quarta-feira, 24 de junho de 2015

"Salário"

Eu era muito ingênuo. Ou será burro mesmo? Em 1993, aceitei o convite para trabalhar na assessoria de imprensa da Câmara de Vereadores de Viamão. O meu chefe era o vereador Glademir de Moura, o Sarico. Eu tinha de escrever uma página por semana das atividades dos vereadores no jornal Correio Rural. E eu ouvia cada bobagem dos edis e seus projetos. Meu salário era cerca de 500 cruzeiros reais. Isso até eu descobrir a mutreta, quase sem querer. Eu recebia o salário em dinheiro, dentro de um envelope. Quem me entregava era a secretária do Sarico. Bem, uma vez fui lá receber a grana, entro na sala e não tem ninguém. Mas sobre a mesa uma lista dos funcionários e os respectivos salários. Pego o papel e começo a ler, e dou de cara com o meu nome. E o salário, de sete mil cruzeiros reais...caí duro. Nisso, a secretária entra na sala e puxa o papel de minha mão. "Você não tem o direito de olhar isso", grita ela. "Tem coisa errada aí, olha o meu salário", digo. "Não tem nada errado", prossegue ela, colocando o papel dentro de uma gaveta e fechando a chave. "Por favor, saia agora", ordena ela. "Não sem antes falar com o vereador", falo. "Ele está ocupado", diz ela. Dali em diante nunca mais consegui falar com o cara, mesmo que tentasse todos os dias. Eu queria esclarecer aquela diferença de seis mil reais e 500 cruzeiros reais, uma enorme grana, no meu salário. O Sarico passou a estar sempre ocupadíssimo. Aguentei aquele absurdo mais uns 20 dias e pedi demissão. Eu havia caído no velho esquema: ele embolsava o meu salário e me dava uma parte mínima. E não houve nem aquele acordo que os CCs fazem, de receber e devolver a grana pro empregador. Eu simplesmente era roubado.

sábado, 13 de junho de 2015

"Pila, pila"

O frio que estava fazendo hoje pela manhã e a caminhada do final da linha do ônibus até o jornal me fez recordar de uma daquelas figuras lendárias do centro de Porto Alegre há algumas décadas atrás. Nos anos 1970 e 1980 havia um mendigo que ficava sentado ali em frente à prefeitura, todo maltrapilho, sujo, a barba e as unhas grandes, com suas sacolas ao redor do corpo. E ele repetia, com a mão direita estendida: "pila, pila", pedindo uns trocados aos passantes. Era o seu ganha-pão, e assim ele passou anos, acabando sendo apelidado do Mendigo Pila. Então numa manhã fria do inverno de 1988, eu caminhava em direção ao trensurb para pegar o trem que me levaria até Esteio e depois fazer a baldeação num ônibus da Central até a Unisinos (à época o trensurb não chegava em São Leopoldo), quando vi várias pessoas paradas no local onde o Pila costumava ficar. E o mendigo estava lá, só que não foi uma visão agradável, pois ele encontrava-se morto. Naquela noite o frio havia sido tão intenso, que o seu corpo não resistiu e sucumbiu ao gelo da madrugada. Foi enterrado como indigente, pois ninguém sabia nome, idade, nada daquele homem, que assim como na vida, teve um triste fim.

sexta-feira, 12 de junho de 2015

“Carne de porco”

Mais uma do Chile. Eu e a minha namorada da época conseguimos marcar uma viagem para conhecer a Terra do Fogo, e o mais legal, seria feito de trem. Partiríamos numa segunda-feira. No sábado fomos a um shopping almoçar. Eu olhava os restaurantes e nada me agradava. Até encontrarmos um bem simpático. Pedimos o menu. O garçom vem, nos entrega e eu vou lendo. “O que é cerdo?”, pergunto. “Cerdo eres cerdo”, responde ele. “Sim, sim, mas carne do que é cerdo?”, insisto. Então partimos para a linguagem universal. Gestos e som. Imito uma galinha, cachorro. E ele entende. E imita um porco. “Ah, porco, óinc, óinc”, falo. “Sim, sim, chancho”, retruca ele. Tá aí, peço carne de porco, que devoro ferozmente. Na madrugada de domingo minha barriga começa a doer, doer e doer muito. Vou ao banheiro, que para o meu tamanho é minúsculo – os chilenos são baixinhos, então para mim tudo é pequeno. E nada saí. Fico roxo, verde, gemo de dor, me deito em posição fetal. A minha namorada não sabe o que fazer. Pela manhã a situação está insustentável. A guria desce atrás de remédios. Tomo e efeito zero. Lá pela uma da tarde parece que vou morrer. Ela chama o gerente. Que vem correndo e chama uma ambulância. Mas aí lembro de quando fomos na agência em Porto Alegre comprar a viagem. A vendedora perguntou se queríamos fazer seguro-viagem. “Não, o que pode nos acontecer?”, respondi. Bingo. Sem seguro-viagem não poderia ser atendido. Às duas da tarde o hotel entra em contato com a embaixada brasileira, que mantinha um funcionário de plantão aos domingos. Ele se dirige ao hotel, me vê ali, gemendo e verde, vai ao telefone e logo estou sendo encaminhado para um hospital particular, que atendia brasileiros em caso de emergência, e a embaixada bancava o serviço. Onde sofro uma lavagem estomacal e o médico constata que aquilo é culpa da carne de porco que comi na véspera. “Moreno, debes tener cuidado com ló que comes”, avisa o médico. “E fazer seguro-viagem”, completa o funcionário da embaixada, me dando um tapinha nas costas. A viagem acabou sendo suspensa por ordens médicas.

“Golpe”

Brasileiro se acha muito esperto. Pois no Chile, em 1997, caí num golpe absurdo. Era uma sexta-feira e eu e a minha namorada tinham os de trocar uns dólares para poder comprar umas passagens para visitar a Terra do Fogo. E a agência chilena só aceitava o peso chileno, nada de dinheiro estrangeiro. Então eu e a minha namorada fomos procurar uma casa de câmbio. Mas já passavam das quatro da tarde, horário de fechamento delas. Ficamos olhando as portas serem fechadas e a funcionária, do lado de dentro lamentando. Então apareceu um carinha magrinho, de cavanhaque. “Ustedes quiérem cambiar la plata?”. Olhamos para ele, que tinha uma cara de honesto e vimos que ele queria nos ajudar. “Sim”, respondi. “Quanto?”, perguntou. “Cien dólares”, falei. “Eu troco para ustedes”, disse o carinha, em portunhol. A minha namorada abriu a bolsa e deu o dinheiro para ele. “Ustedes esperam acá que yo vuelvo”, garantiu ele, pegando os cem dólares e entrando numa porta lateral. O tempo foi passando, cinco, dez, quinze, vinte minutos e nada do carinha. Então decidimos entrar na mesma porta, pegamos um corredor e de repente descobrimos que aquilo era uma galeria e que havia uma saída do outro lado, há cerca de uns dez metros. Nos olhamos e fizemos cara de otário um para o outro ao descobrirmos ter sido vítimas de um malandro de rua. O cara deve ter pego o dinheiro, se mandou achando nunca ter ganho uma grana tão fácil. E em 1997 cem dólares era grana. A minha guria me olhou e disse: “Não vai contar isso pra ninguém”. Jurei que não.

“Clássico”

Santiago do Chile, em 1997. Estava no quarto de hotel, vendo tevê, quando vejo o anúncio de que no domingo tinha clássico entre Colo-Colo e Universidad Católica no Estádio Nacional, aquele lugar infame onde Pinochet mandava torturar os presos políticos durante o Golpe de 1973. Tinha de ver este jogo e conhecer o estádio. Será que conseguiria ingresso? Consegui a informação de que como o mandante era o Colo-Colo, os ingressos tinham de ser adquiridos na sede do clube, odiado pela elite branca, que o considera o time dos indiozitos. Conseguimos os ingressos, dois por 20 dólares. Pois domingo nos dirigimos para o estádio. Estávamos atravessando uma longa avenida e visualizamos o local. E de repente escutamos cantorias vindo dos dois lados da avenida. E nós bem no meio dela, quando enxergamos as torcidas dos dois times vindo de lados opostos, com bandeiras, pedaços de pau, muitos com o rosto coberto com lenços. E de repente eles partem para a mesma direção e começam a se digladiar. Minha namorada começa a gritar e puxo ela prum canto. Voam pedras, bombas. Então aparece a polícia, muitos montando cavalos e descendo a porrada nos torcedores. Como eles não sossegam, aparecem aqueles tanques jogando jarros de água na turba. A água bate no peito de alguns, que voam longe. Após uma batalha campal de uns 15 minutos, conseguimos ser escoltados para dentro do estádio, junto com outros turistas que tiveram a brilhante ideia de ver aquele derby. Lá dentro ficamos numa das laterais, em bancos que eram feitos de troncos de árvores. As duas torcidas ficam atrás das goleiras, e o campo é cercado de arame, e muitos tentam pular para dentro, e a polícia dá cacetadas nas mãos deles, que caem de dois, três metros, tentam voltar e são novamente rechaçados. Começa o jogo às 17h e logo começa a escurecer. No intervalo decidimos ir embora, pois ficamos pensando o que poderia acontecer ao final da partida, no meio da escuridão.

“Terremoto”

Em 1997 conheci o Chile com uma antiga namorada. Foram quase duas semanas de infinitas aventuras. Para começar, quando chegamos a Santiago recebemos a notícia de que não chovia no local havia seis meses. Pois quando nos dirigíamos ao hotel, caiu o maior aguaceiro. E num outro dia, a gente decidiu dar uma volta pela cidade. Pegamos um mapa, subimos no ônibus e fomos para um velho forte de onde podíamos ver os Andes. E lá estamos neste forte, construído pelos espanhóis por cerca de 1750, como defesa contra os indígenas, e sinto um tremor . “Amor, o chão está tremendo”, digo para a minha namorada. “Ih, tu bebeu. Não tem nada tremendo”, diz ela. “Tá sim, estou sentindo”, repeti, ficando meio tonto. “Ah, deve ser a altura do forte”, fala ela. “Não”, insisto. E a terra treme e a guria não sentia. “Tá bom”, desisto. Pois chegamos no hotel e vem um casal de brasileiros que também estavam hospedados por lá. “Crianças, vocês viram o terremoto?”, pergunta o senhor. “Que terremoto?”, questiona minha teimosa namorada. “Teve um terremoto”, avisa ele. “Tudo tremeu aqui no hotel”, completa. Logo chega o gerente, querendo saber se estamos bem e avisando que o tremor foi de 6,5 graus. Não destruiu nada, só algumas rachaduras em alguns prédios e que estes tremores desta magnitude eram comuns. Olhei para minha namorada, com aquele sorriso de vencedor. “Não te disse?”, encerrei o assunto.

“Basquete”

Em 1988 não escapei da de educação física na faculdade. Como estava desempregado, não consegui atestado para não ter de fazer a cadeira na Unisinos. Eles liberavam se a gente tinha algum problema físico, de saúde ou trabalhava. Apesar de alegar minha miopia, isso não foi suficiente. E pior que nas aulas não havia futebol , mas vôlei e basquete. E eu odiava. E lá estou eu na primeira aula de bola ao cesto. Dois colegas foram escolhidos como capitães e assim poderiam escolher os seus jogadores. O único negro na aula era eu. E um dos capitães aponta o dedo pra mim e diz: “Quero o Michael Jordan ali”. Eu não tinha a mínima noção de quem era o tal Michael Jordan. “É você mesmo”, disse ele, me chamando. Coloquei o dedo indicador no peito e perguntei: “Eu?”. “Sim”. Bem, ser o único negro e meus 1,90 deveriam servir alguma coisa, deve ter pensado o cara. Só que eu era muito ruim. E os caras do meu time só jogavam a bola pra mim, esperando que eu resolvesse. E eu ia perdendo todas, sendo desarmado sem dó. E o pior quando recebia a bola embaixo da cesta. Eu tentava uma, duas, três vezes e a bola nunca caia. Zero pontos. Acabou o jogo e os caras pra mim: “Ah, hoje foi má sorte”. Tá bom. E na aula seguinte novo fracasso. No terceiro jogo já me olhavam de cara virada. E na quarta partida, simplesmente deixei de ser escolhido. Fracasso total, até que quebrei o dedo num acidente caseiro e fui dispensado das aulas. Para minha sorte e a dos basqueteiros, que se viram livres daquele perna ou seria mão de pau?

sábado, 6 de junho de 2015

“Segredo de Estado”

Em 1992 morava em São Paulo e consegui um convite para assistir a gravação do programa do Jô Soares, o “Jô Onze e Meia”, nos estúdios do SBT, na rua Alfonso Bovero. Tinha de estar lá por volta das 16h. O gordinho gravava a partir das 17h programas para três dias. Quando saí da república onde morava, a galera vibrou e disse: “Vê se solta esta tua gargalhada e abafa a do Bira (o baixista da banda que acompanha o Jô e conhecido pela risada forte e alta)”. “Vamos ver”, disse. Depois de esperar alguns minutos, a plateia foi levada aos estúdios. Recebemos as instruções de como nos comportar durante as mais de quatro horas de gravação, e sem lanchinho. Bico seco. Ah, e no final das gravações, poderíamos conversar com o Jô Soares. Eu não queria isso, mas olhava para a xícara dele sobre a mesa. E à época todo o Brasil queria saber o que era que ele bebia durante suas entrevistas. Segredo de estado total. Pensei com meus botões, vou descobrir isso. E começam as entrevistas, eu nem me lembro quais eram os entrevistados do programa. Lá pelas nove da noite, elas acabaram, e liberaram para a galera entrar no palco e conversar com o Jô. Ele veio em direção ao público e eu fui na direção de sua mesa, passei por ele a passos lentos, quando vi na entrada do estúdio uma guria me olhando. E parece que ela adivinhou e começou a correr em direção a mesa. Apressei o passo e fui chegando, chegando, mas ela foi mais rápida e quando estiquei o pescoço para ver qual o líquido secreto na xícara, ela puxou a caneca e soltou: “O que tu quer?”. “Quero saber o que ele bebe”. “Pois não te interessa, e sai, sai”. “Ah, deixa eu ver”, pedi. “Não, cara, sai daqui”, disse ela, tapando a caneca com uma das mãos e eu esticando mais o pescoço. “Tá bom, segredinho de estado”, soltei. “Sim, e se tu não sair fora, chamo os seguranças. Segurança”, gritou ela para uns caras de terno preto que estavam parados atrás do Jô, que distribuía autógrafos. Eles me olharam e fui saindo de mansinho. Anos depois, já na Globo, divulgaram que o tal líquido que ele bebe é coca-cola.

terça-feira, 2 de junho de 2015

“Bono, Bolo”

Está passando na tevê um comercial dos postos Ipiranga, onde um matuto tenta fazer o Cebolinha dizer Ipiranga, e o Cebolinha não consegue, falando “Ipilanga”. Aí me lembrei de uma vez em que estava no aeroporto de Salvador esperando a hora de meu voo. Sei lá, de repente deu vontade de comer umas bolachas recheadas. Levantei da cadeira, fechei o livro que estava lendo e fui procurar as tais bolachas. Lá de longe enxerguei um quiosque com várias guloseimas. “Boa tarde”, disse. A guria que estava no balcão me olhou e perguntou, com aquele sotaque cantado baiano: “Cê não é daqui não, né?”. “Não, sou do Sul. Gaúcho”. “Ah, tá, que cê quer?”. “Eu queria um Bono”, falei, citando as famosas bolachas, que antigamente eram conhecidas como São Luiz Extra. “Bolo?”, retrucou ela. “Não, Bono”, respondi. “Bolo?”. “Não, Bono”. “Bolo?”, insistiu a baiana. Eu achei que ela estava tirando sarro de minha dicção, que não é das melhores. “Não, quero Bono”. “Bolo não tem”. “Não, Bono, Bono”. “Ué, não temos bolo”. PQP. Pensei melhor. “Não, querida, Bono, bolachas recheadas”. “Ah, biscoitos recheados. Como é mesmo? Bolo?”. “Não, Bono, com ene, não é bolo, o que você não está entendendo?”. “Bono não conheço não”, finalmente me disse a guria. “Pensei que tinha em todo o Brasil”, falei para ela. Acabei me contentando com uma barra de chocolate e balas de goma.