quarta-feira, 28 de março de 2018

"Ateu"

Não é fácil ser ateu. Por muito tempo falei que era agnóstico para não ser crucificado em praça pública. Uma vez estava eu e um amigo (não vou identificá-lo pois não sei mais se ele ainda mantém a convicção de três décadas) almoçando na casa da avó de uma amiga de infância. Nós éramos tratados como filhos pela doce velhinha. Mas aí ela resolve perguntar: "Chico, teu pai vivia na igreja, tão religioso. Mas nunca te vejo lá? Por que você não aparece para ouvir a palavra de deus?". Ih, ferrou, pensei. Olhei para todos à mesa, e confessei: "Dona Olga, sou ateu". Bum, foi como tivesse caído uma bomba atômica. Ficaram todos me olhando. E ela: "Aí, então você anda com o demônio, você é uma pessoa má". Nossa, que percepção! Até então eu era um queridão que podia sentar e almoçar com todos e do nada virei o filho do capeta. Aí ela se vira para o meu amigo e pergunta: "Mas você não, né? Você crê no nosso senhor?". E ele: "Não". Até hoje não sei como não fomos expulsos naquele momento. Mas nunca mais fomos convidados para almoços, jantas ou cafés. Exilados. Bem, quase 30 anos depois, estou na beira da praia, Atlântida, cobrindo o litoral pelo jornal e cai a maior chuva. Mas eu e o fotógrafo (que também pediu para não ter o nome citado) temos de entrevistar algumas pessoas para o ambiental - mostrar como estava a praia naquele dia. O tempo não ajuda, mas eis que de repente aparece um senhor lá na beira do mar, segurando um balde. Ufa, um case. Corremos até ele. "Bom dia, senhor. Tudo bem? Somos da reportagem do Correio do Povo. Pode nos dar uma entrevista?". Todo simpático, ele diz que sim, está ali pegando mariscos, enquanto espera a mulher, doméstica, sair do trabalho e que a chuva e os trovões não o assustam. Fomos para baixo de uma barraca e começo a lhe fazer perguntas. E ele respondendo, até que não recordo qual motivo ele solta: "Graças a deus, não tenho dinheiro, mas saúde e disposição". E olha para mim. "E que bom poder compartilhar a minha fé com vocês. O amigo, claro, reza muito, né?". Olho para ele, e digo: "Não, não rezo". "Mas por quê?". "Não tenho religião", respondo. "Mas claro que crê em deus?", insiste ele. "Não". Nossa, parece que o chão tremeu. Aí ele olha para o fotógrafo e faz a mesma pergunta e escuta a mesma resposta. "Não, não acredito". "Mas como isso é possível, não acreditar no criador do universo?". "Meu senhor, o senhor quer que eu acredite que um velhinho de barba branca apareceu lá no céu, fez uma mágica e apareceu o mundo?". "Sim". "Não". "Ele criou Adão e Eva". "Há controvérsias", respondo. "Não, ele criou Adão e Eva, que foi o nosso início". "Ih, a cronologia não fecha. Se ele criou Adão e Eva, o homem apareceu então antes dos dinossauros, e a história mostra o contrário...", ironizo, confesso. Aí ele me solta: "Os dinossauros nunca existiram, foram uma invenção. Pura bobagem". Ah, não estou afim de discutir religião, só quero terminar minha pauta e sair da chuva. "Os ateus só são piores que os judeus, que são uma raça triste, pois mataram Jesus". O jeito é deixar ele ficar xingando e bufando. Saímos em disparada, e o senhorzinho gritando: "deus vai castigar vocês, vocês arderão no inferno...

terça-feira, 20 de março de 2018

"Segurança 2"

Massss....oiiii, não é que aconteceu de novo? Estou eu indo levar o lixo para a lixeira do prédio, que fica ao lado do estacionamento, e passa por um mim uma senhorinha de seus 70 anos. Dou boa tarde e sou completamente ignorado. Tudo bem. Coloco os sacos de lixo na lixeira e retorno para a entrada do prédio, e esta mesma senhorinha está lá parada na porta, com uma cara atônita. Vou em sua direção e digo: "A senhora não consegue abrir a porta? Eu abro", já pegando a chave e colocando na fechadura. Ela nem me olha. E então alguém fala com ela pelo interfone: "Já vou abrir para a senhora". E a velhinha: "Não precisa mais, o segurança vai abrir para mim". O quê? Segurança? Mas como? "Minha senhora, não sou segurança, nem guarda, sou um dos moradores do prédio", afirmo. Então ela finalmente me olha, e me diz: "Bah, meu filho, me desculpe, é que não prestei atenção, só vi um rapaz....". Vamos, vamos, vamos, fico pensando, diz de uma vez..."Sim, a senhora viu um rapaz negro, foi isso, né? E negro só pode ser porteiro, guarda, segurança...", digo, irritado. Ela estica a mão e pega o meu braço. "Me desculpe, me desculpe. Aí, que vergonha", fica ela repetindo, enquanto termino de abrir a porta e abrindo espaço para ela entrar.