terça-feira, 27 de novembro de 2018

"Incomodada"

Nesta semana fiz uma interessante e importante entrevista com o pesquisador Marcelo Carvalho, idealizador do site Observatório da Discriminação Racial no Futebol, onde ele se dedica a monitorar casos de racismo, homofobia, misoginia e xenofobia no chamado esporte bretão, desde 2014 no Brasil e no mundo. Marcamos de nos encontrar em um café no Guion Sol, na zona sul de Porto Alegre, no meio da tarde. Comigo vai o fotógrafo Ricardo Giusti. Chegamos ao local combinado, e mal sentamos para iniciar a entrevista, uma senhora com sua filha pequena na mesa ao lado, já passou a nos olhar de forma incomodada, nervosa até. Afinal, dois negros sentaram bem do lado dela. Até que ao ouvir o conteúdo de nossa conversa, não aguentou mais e disparou: "Eu fico furiosa. Não aguento este papo de vocês. Vitimização. Por que o dia do negro? Por que o branco também não pode ter o seu dia? Vocês só fazem reclamar, ah, o negro, o negro. Como se só vocês existissem", disparou ela. Nem tentamos argumentar, não adiantaria, pois o racismo, infelizmente, está inserido na sociedade brasileira. Depois de nos xingar bastante, ela pegou a menina e foi embora. Triste.

"Fiz parte daquela rádio, e isso até hoje me orgulha"

Em 1990, trabalhava na rádio Bandeirantes, e numa bela manhã de sol, fui chamado à sala do diretor Edson Camarão, que me dá uma notícia não muito legal. "Os teus serviços não são mais necessários aqui", disse, de forma seca, alegando ter sido um pedido do apresentador Paulo Solano. Que confrontado, negou, dizendo que a minha demissão era ideia mesmo do Camarão. Bem, fazer o quê? Cabisbaixo, estava me dirigindo à redação para pegar meus pertences, quando deparo com o Nilton Fernando, que era o diretor da Ipanema FM, que ficava ali, no mesmo corredor da Band. "Chico, que cara é esta?", perguntou. Digo: "Acabei de ser demitido". Sem se abalar, o Nilton me dá um abraço e diz: "Fica tranquilo. Tu não foi o primeiro, e nem será o último". Aquele consolo não adiantou muito, confesso. Mas ele prosseguiu. "Vai para casa, descansa, que vamos pensar em algo", ressaltou. Pois duas semanas depois ele me liga e pede para ir vê-lo na rádio. Ao chegar lá, o Nilton me fala: "Topa trabalhar conosco, na Ipanema?". Quase cai para trás. "Claro, que pergunta", respondo. "Bom, o horário é meio estranho, você será uma espécie de curinga, substituindo os redatores nas folgas e férias deles. Uns dias das 20h às 24h, em outros das 7h às 12h, outros, das 13h às 19h. Quer?", perguntou. Assim comecei a trabalhar na Ipanema, a rádio dos meus sonhos, que eu escutava desde o início, em 1983, em todos os horários, dias. Aqueles locutores pareciam ser meus amigos mais íntimos. O Mauro Borba (que um dia me deu bronca porque ele se atrasou e o operador Marcelo pediu para eu abrir o horário, aí fui ao ar, e não contente em apenas falar no microfone, ainda coloquei para rodar Dead Embryonic Cells, do Sepultura, Wherever I May Roam, do Metallica, e Holy Wars, do Megadeth, e ele não tocava metal no horário dele), a Katia Suman, o Alemão Vitor Hugo, a Nara Sarmento (com quem eu tinha tetras sobre a dupla Gre-Nal), o Jimi Joe, a Mary Mezzari (que brigava muito comigo quando eu pegava antes dela os jornais do centro do país, ou sentava na mesa dela e usava a máquina de escrever dela para redigir o noticiário, o KG (que colocava discos com músicas de 20 e poucos minutos para a gente ir ao bar tomar o café da manhã e falar sobre o Grêmio). A Katia foi a primeira a me aguentar. Eu escrevia os noticiários para ela, entre às 20h e às 24h. E viajava nos textos - uma vez ela me deu uma lição quando ironizei o Sylvester Stallone e ela me mostrou que ele não era um ator só brucutu como demonstrava, e curtia aquele silêncio pelos corredores. Fiquei na rádio entre 1990 e 1991, em 1992 fui morar em São Paulo, e em 1993 voltei, ficando mais uns seis meses por lá, até vir parar no Correio do Povo em fevereiro de 1994. Fiz parte da história daquela rádio, e agora ao ler o livro da Katia voltei no tempo, relembrando fatos e histórias e pessoas que tiveram grande importância em meu jeito de ser e pensar.

quarta-feira, 28 de março de 2018

"Ateu"

Não é fácil ser ateu. Por muito tempo falei que era agnóstico para não ser crucificado em praça pública. Uma vez estava eu e um amigo (não vou identificá-lo pois não sei mais se ele ainda mantém a convicção de três décadas) almoçando na casa da avó de uma amiga de infância. Nós éramos tratados como filhos pela doce velhinha. Mas aí ela resolve perguntar: "Chico, teu pai vivia na igreja, tão religioso. Mas nunca te vejo lá? Por que você não aparece para ouvir a palavra de deus?". Ih, ferrou, pensei. Olhei para todos à mesa, e confessei: "Dona Olga, sou ateu". Bum, foi como tivesse caído uma bomba atômica. Ficaram todos me olhando. E ela: "Aí, então você anda com o demônio, você é uma pessoa má". Nossa, que percepção! Até então eu era um queridão que podia sentar e almoçar com todos e do nada virei o filho do capeta. Aí ela se vira para o meu amigo e pergunta: "Mas você não, né? Você crê no nosso senhor?". E ele: "Não". Até hoje não sei como não fomos expulsos naquele momento. Mas nunca mais fomos convidados para almoços, jantas ou cafés. Exilados. Bem, quase 30 anos depois, estou na beira da praia, Atlântida, cobrindo o litoral pelo jornal e cai a maior chuva. Mas eu e o fotógrafo (que também pediu para não ter o nome citado) temos de entrevistar algumas pessoas para o ambiental - mostrar como estava a praia naquele dia. O tempo não ajuda, mas eis que de repente aparece um senhor lá na beira do mar, segurando um balde. Ufa, um case. Corremos até ele. "Bom dia, senhor. Tudo bem? Somos da reportagem do Correio do Povo. Pode nos dar uma entrevista?". Todo simpático, ele diz que sim, está ali pegando mariscos, enquanto espera a mulher, doméstica, sair do trabalho e que a chuva e os trovões não o assustam. Fomos para baixo de uma barraca e começo a lhe fazer perguntas. E ele respondendo, até que não recordo qual motivo ele solta: "Graças a deus, não tenho dinheiro, mas saúde e disposição". E olha para mim. "E que bom poder compartilhar a minha fé com vocês. O amigo, claro, reza muito, né?". Olho para ele, e digo: "Não, não rezo". "Mas por quê?". "Não tenho religião", respondo. "Mas claro que crê em deus?", insiste ele. "Não". Nossa, parece que o chão tremeu. Aí ele olha para o fotógrafo e faz a mesma pergunta e escuta a mesma resposta. "Não, não acredito". "Mas como isso é possível, não acreditar no criador do universo?". "Meu senhor, o senhor quer que eu acredite que um velhinho de barba branca apareceu lá no céu, fez uma mágica e apareceu o mundo?". "Sim". "Não". "Ele criou Adão e Eva". "Há controvérsias", respondo. "Não, ele criou Adão e Eva, que foi o nosso início". "Ih, a cronologia não fecha. Se ele criou Adão e Eva, o homem apareceu então antes dos dinossauros, e a história mostra o contrário...", ironizo, confesso. Aí ele me solta: "Os dinossauros nunca existiram, foram uma invenção. Pura bobagem". Ah, não estou afim de discutir religião, só quero terminar minha pauta e sair da chuva. "Os ateus só são piores que os judeus, que são uma raça triste, pois mataram Jesus". O jeito é deixar ele ficar xingando e bufando. Saímos em disparada, e o senhorzinho gritando: "deus vai castigar vocês, vocês arderão no inferno...

terça-feira, 20 de março de 2018

"Segurança 2"

Massss....oiiii, não é que aconteceu de novo? Estou eu indo levar o lixo para a lixeira do prédio, que fica ao lado do estacionamento, e passa por um mim uma senhorinha de seus 70 anos. Dou boa tarde e sou completamente ignorado. Tudo bem. Coloco os sacos de lixo na lixeira e retorno para a entrada do prédio, e esta mesma senhorinha está lá parada na porta, com uma cara atônita. Vou em sua direção e digo: "A senhora não consegue abrir a porta? Eu abro", já pegando a chave e colocando na fechadura. Ela nem me olha. E então alguém fala com ela pelo interfone: "Já vou abrir para a senhora". E a velhinha: "Não precisa mais, o segurança vai abrir para mim". O quê? Segurança? Mas como? "Minha senhora, não sou segurança, nem guarda, sou um dos moradores do prédio", afirmo. Então ela finalmente me olha, e me diz: "Bah, meu filho, me desculpe, é que não prestei atenção, só vi um rapaz....". Vamos, vamos, vamos, fico pensando, diz de uma vez..."Sim, a senhora viu um rapaz negro, foi isso, né? E negro só pode ser porteiro, guarda, segurança...", digo, irritado. Ela estica a mão e pega o meu braço. "Me desculpe, me desculpe. Aí, que vergonha", fica ela repetindo, enquanto termino de abrir a porta e abrindo espaço para ela entrar.

domingo, 28 de janeiro de 2018

"Segurança"

Só pode ser sacanagem. Há alguns anos estava saindo de um show no Opinião usando uma das minhas tradicionais camisetas pretas de banda de metal. Aí uma guria para do meu lado, e me chama: “Por favor, seu segurança, dá para dar uma ajudinha aqui, que minha amiga está tonta”. “Olha, até posso ajudar, mas não sou segurança. Estava lá curtindo o show”, digo. Não recordo mais qual era a banda que tocou aquela noite. A guria olha pra mim, abaixa a cabeça, vê o logo da camiseta, e: “Putz, me desculpa. Jurei que tu era segurança”, completa. “Claro, negão, alto, conclusão: segurança. Imagina se eu estaria aqui não fosse isso”, disparo. Ela não nega. Bem, agora estou na beira da praia, cobrindo o litoral pelo jornal. Tenho de achar um case para a matéria e fico observando os veranistas. Meus trajes? Bermuda e camiseta preta de banda. Aí uma senhora sai da água e vem em minha direção. “Moço, moço”, grita ela. “Sim?”, digo. “O senhor é segurança aqui na praia?”, dispara ela. “Ah, claro, um negão de 1,90m de preto só pode ser segurança”, reclamo. Ela fica vermelha, e tenta consertar: “Não, não quis dizer isso”, garante. “Quis sim, não vou bater na senhora”, afirmo. “É, achei sim”, reconhece ela, pedindo mil desculpas e saindo às pressas. Horas depois estou no saguão do hotel em que a equipe do Correio do Povo se hospeda, esperando que a galera se organize para a gente sair pruma pauta. Vem um casal na minha direção: “Ei rapaz", diz o cara. “Sim?”, devolvo. “Você é o segurança aqui?”, pergunta. Mas que porra é essa? De novo? Ao invés de responder, me dirijo para o carro do CP, com aquele logo gigante. E abro a porta. Aí sim: “Não senhor. Sou jornalista”, entrando no carro. O casal fica vermelho e sai bem rapidinho, com a moça puxando o braço do marido. Para bom entendedor, meia palavra ou gesto bastam.

"Sambista"

Estamos eu, a fotógrafa Alina e o motorista Válter no restaurante do Hotel Figueiras, se preparando para jantar, depois de um dia corrido na cobertura de praia. Aí me sirvo, e o Valtinho está lá, no buffet, quando chega um garçom nele: "E aí, tudo bem? E cadê o Mr. Catra?", pergunta, apontando para mim. De longe eu escuto e protesto: "Pô, Mr. Catra não". Aí o garçom me ouve e se dirige para a mesa em que estou jantando. "Meu véio, fiz um elogio para ti". "Não, para mim é uma ofensa. Me chamar de Mr. Catra", reclamo. O Valtinho chega e diz: "Logo o Chicão, que não gosta de funk e rap". "Ah, então ele gosta de samba, né?", tenta deduzir o garçom. "Não, ele é do rock", ensina o Valtinho. "Mas como, tem de ser samba, ele é negro!", prossegue a pessoa. "Não, meu amigo, não gosto de samba, pagode, funk, rap, hip-hop, sertanejo", vou informando. "Mas está no sangue do negro ser sambista", insiste o garçom. "Quem te deu essa informação?", pergunto. "Ah, tenho um filho negro que é sambista, e todo o negro tem o samba no sangue", continua insistindo o cara. "Puxa, tu ouviu falar em estereótipos?", reclamo. O cara fica me olhando com uma cara de quem não está entendendo nada. "Vim da África, moro em uma cabana, caço animais com uma lança e flecha e ando de tanga e ainda como carne humana", vou enumerando. "Ah, e ainda faço música num tambor", continuo. "Não conheço nenhum negro que não goste de samba", constata o garçom. "Prazer, então sou o primeiro. E deu pra mim, fui", digo, me levantando e deixando o restaurante antes de mandar a figura tomar no cu.