domingo, 13 de outubro de 2013

“Fogo”

Criança é foda. Lá estou eu com meus 7, 8 anos de idade, sozinho em casa, após ter chegado da escola. Já almocei, fiz os temas, e assim pude ligar a televisão para assistir os desenhos animados que passavam na década de 1970. E naquela tarde decidi brincar de cientista, não me perguntem porque. Pego uma bacia, encho de pedras e as banho com álcool. Logo em seguida pego um fósforo e acendo, para ouvir e ver uma explosão na bacia. Dou um pulo tentando me afastar das chamas, mas noto um calor se espalhando pelo meu corpo. Então vejo meu braço direito envolto em chamas. Minha nossa, estou pegando fogo! Corro para a pia, abro a torneira e deixo a água escorrer pelo meu braço, apagando o fogo. Fico ali tremendo, apavorado. Horas depois, o pai e a mãe chegam em casa, e perguntam se tudo correu bem durante a tarde. “Claro, claro”, respondo, sem muita convicção. “Por que tu está gaguejando?”, pergunta a mãe, desconfiada. “Nada, nada”, respondo, mas passo as duas próximas semanas achando que o meu braço iria cair.

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

“Demissão”

Em 1991 consegui meu primeiro emprego na grande imprensa, como produtor na rádio Bandeirantes AM, nos programas do Paulo Solano e do Gilberto Gianuca. Eram programas essencialmente sobre política e eu tinha de preparar pautas e colocar no ar vereadores, deputados, senadores, todas as manhãs. Era uma doideira. Começava a correria lá pelas 6h45min e só terminava o trabalho por volta das 13h30min. Imaginem uma época em que não havia celulares. Então tinha de combinar com os políticos para eles estarem em suas casas ou gabinetes na hora que eu ligasse para irem ao ar, nas entrevistas com os dois apresentadores. Nos intervalos dos programas, eu atravessava o corredor e ia até a Ipanema FM para me meter na programação da rádio rock. Com quase três meses de casa, fui designado para ensinar uma estagiária, a Tânia, na produção. E lá fui eu dar uma de professor. Uma semana depois, chego na rádio e a guria está sentada em meu lugar no estúdio. E nem se dá ao trabalho de levantar. Fico ali de pé, e minutos depois entra no estúdio o diretor da Band, o Camarão. “Chico, quando acabar o programa do Solano passa na minha sala”, diz ele. “Ok”, respondo. Às 10 horas termina o programa e me encaminho pra sala do Camarão. Entro e ele vai logo dizendo: “Chico, as coisas estão pretas para você”. Como nunca perco a piada, eu respondo, passando os dedos da mão direita no braço esquerdo. “Eu sei”, querendo dizer que sou negão. O Camarão se mantém sério e continua: “A partir de hoje os seus serviços não são mais necessários na rádio”. Mas como, quero saber. “Ah, o Solano pediu sua demissão”, responde ele. Saio da sala e vou falar com o Solano, que nega. “Eu? Não, bem capaz. Isso é coisa do Camarão”. Volto pra falar com o diretor da rádio, mas não há o que fazer. Estou fora. Fico ali, pelo corredor, vagando meio sem rumo, ainda não acreditando na demissão. Nisso passa o Nilton Fernando, que era o diretor da Ipanema. Ele me olha, e pergunta o que houve. Respondo que fui demitido. “Chico, fica tranquilo, vai pra casa, que vamos pensar em algo”, diz ele. Uma semana depois, ele me liga e me convida para ser redator da Ipanema, e aceito de cara. Quando chego no prédio, dou de cara com o Camarão, direto. “O que tu faz aqui?”, pergunta ele. “Olha, agora sou da Ipanema, com licença”, falo, passando reto por ele. Intocável em meu novo espaço.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

“Tombo”

Pré-adolescente, ganhei uma bicicleta Caloi 10 de meu pai. E sim, o presente foi para missões suícidas pelas ruas de Porto Alegre e Viamão no início da década de 1980. Costumava descer as lombas sem segurar o guidom da bike, e incrivelmente nunca me estoporei nesta manobra. Mas dois tombos foram inesquecíveis e muito, muito doloridos. No primeiro, descia uma rua em obras na Santa Isabel, em Viamão, e do outro lado vem em minha direção uma outra bicicleta. E nos chocamos. Eu voo sobre um monte de pedras, levanto e o pai do garoto da outra bicicleta vem em minha direção. “Garoto, entra no carro, precisamos ir pro hospital”, diz ele. Mas eu não quero de jeito nenhum. Afinal estou bem, menos minha bicicleta, toda torta. Até que o carinha me fala: “Guri, tu não está bem, está sangrando”, alerta. Então olho pra baixo, e sai muito sangue de minha mão direita, que foi rasgada quando voei sobre as pedras. Acabo desmaiando ao ver a sangueira, e acordo no hospital. Meu pai do meu lado, e eu levando seis pontos na ferida. Semanas depois, outra rua em obras, e um morrinho de areia. Bah, coisa legal para se pular, e cair do outro lado. O morro de areia tem cerca de 1,80m de altura. Com o impulso, dava para chegar quase aos 3 metros de altura. E eu pulo, mas se havia areia deste lado, não havia nada do outro lado. Um imenso buraco de onde a terra fora retirada. E vou parar lá dentro, batendo com o ombro direito no fundo. Abre um rasgo no local. Eu vou para casa, passo água e depois coloco pomada na ferida. Aquilo gruda de uma forma. Quando o pai chega em casa, berro de dor e sou levado pro HPS. O enfermeiro olha pro machucado, e pergunta o que fiz. Conto a burrada, e ele é obrigado a raspar a pomada com uma lixa. E como doeu, e ficaram as cicatrizes para lembrar a burrada.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

“Faca”

Nesta quarta-feira de manhã bem cedinho irei pra faca, e pra quem não entende gírias oitentistas, passarei por uma cirurgia. Nada assustador, tireóide e amígdalas. Mesmo assim, estou meio assustado, né, afinal anestesia geral e o escambau. Orientação médica: jejum completo, ou seja, nem água posso tomar nas próximas horas. E depois algumas semanas de retiro completo, e a base de papinhas, sucos, iogurte e mingau. Como as últimas oito semanas têm sido praticamente na mesma base de alimentação, com a diferença que pude comer bergamotas e outras frutas, recebo uma ligação do hospital: Senhor Francisco, como o senhor passará as próximas semanas praticamente passando fome – não foi bem isso o que a moça disse, mas foi o que escutei -, antes de começar o jejum pré-cirurgia, por favor, está liberado para comer o que quiser. Aí lembro que a Olívia me disse na terça-feira à tarde: “Chico, como tu só vai ver comida sólida daqui a 15, 20 dias, vai pra casa e pede uma pizza e toma um vinho bem gostoso”. Parece que a mãe do Lourenço adivinhou. Aliás, adivinhou. “Posso comer uma pizza?”, pergunto pra secretária do médico. “O senhor deve comer uma pizza, e se puder comer uma sobremesa bem doce depois, por favor, fique à vontade”, me diz ela. Então tá, chego em casa, e peço uma pizza de calabresa e frango, com muito, muito queijo, e um bom vinho chileno. De sobremesa, um pudindinho. Como não estou mais acostumado com estas guloseimas, a sensação é de que vou estourar, e fico pensando, e não quero pensar: “não, não é a última refeição a que tem direito um condenado à injeção letal.” É só um pequeno interregno antes de voltar à vida normal, sem insônia, sobrepeso, apneia e outros probleminhas.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

“Quando brota o amor”

Quando criança, lá pelos 7, 8 anos, chegava em casa após o colégio, e sozinho, só podia assistir televisão após almoçar e fazer os temas de casa. Obedecia só de medo no que poderia acontecer se a mãe e o pai chegassem em casa no começo da noite e descobrissem que eu não fizer o que eles haviam me determinado. A tevê era a minha babá eletrônica, e numa tarde de poucos deveres, estava sendo transmitido pela TV Difusora, atual Band, um filme que me marcou para sempre: “Quando brota o amor”, ou no original “Melody”, que também é o nome da música tema, dos BeeGees, antes da famigerada fase discoteca. O filme é de 1971. E a história é a seguinte: duas crianças de 10 anos, Melody e Daniel, se conhecem numa escola de Londres e apaixonam-se. Como os adultos não aceitam aquele romance infantil, os dois decidem fugir. E enquanto confabulam, sonham com o amor eterno. E viver juntos para todo o sempre, de terem filhos, de dividirem as alegrias e tristezas, de nunca magoar um ao outro. E sem querer, os dois almejam o que deseja a maioria dos seres humanos – encontrar a cara metade e ser feliz para todo o sempre. Aí a gente encontra a cara metade, e sonha só com coisas boas dali em diante, e faz promessas. Muitos ficam pelo meio do caminho. Mas como sou um romântico incurável, acho que a felicidade está logo ali à nossa porta, só esperando um empurrãozinho. E não custa nada lutar para ser feliz para todo o sempre. Ah, Melody e Daniel fogem, são perseguidos, e não desistem de seus sonhos.

domingo, 18 de agosto de 2013

"Dedo"

No começo de 1988, fiquei desempregado e sem como me manter na república onde morava na Duque de Caxias e ainda por cima cursando o terceiro semestre da faculdade de jornalismo na Unisinos. Meu pai morreu no começo de março e a mesada que ele me dava, evidente, terminou. O jeito foi voltar a morar na casa da mãe, em Viamão, muito a contragosto. Era terrível ficar pedindo grana toda hora pra mãe. Então comecei a procurar emprego, e uma amiga me consegue uma entrevista na multinacional em que o irmão dela era diretor. “Vai ser só um teste datilográfico, apenas pela burocracia, mas você está contratado. A mana me passou excelentes referências suas”, me garante o irmão de minha amiga por telefone na sexta-feira à tarde. O celular era ainda algo impensável, eu estava ligando de um orelhão. A entrevista é marcada para a segunda-feira à tarde, depois que eu chegasse da Unisinos. E no sábado, final de tarde, já escureceu e eu e o Marcelo Sapão estamos na parada de ônibus próxima a casa de minha mãe, falando bobagens, quando vem vindo o Valmor Pinguim, todo arrumadinho. Ele recém começou a namorar a Rose, que morava em um bairro distante. Então o jeito é pegar o ônibus, que só passa de hora em hora. Cabelinho engomado e com mullet, camisa estampada, tipo aquelas usadas pelo detetive Magnum, calça branca e tênis All Star, mas estamos em 1988. “Onde tu vai?”, pergunta o Marcelo. “Na Rose”, responde o Valmor. E lá vem o solitário ônibus, e eu e o Sapão pensamos, “ah, mas ele não vai mesmo, vai perder o ônibus”. A maldade toma conta de nós dois, e quando o ônibus para, seguramos o Valmor para ele perder a viagem. Outro só às oito da noite. Ele se debate, e a gente segurando firme. “Me solta, me solta”, implora, e a gente rindo maldosamente. O motorista vai arrancando, a porta ainda aberta, e o Valmor quer chegar cedo para ver a namorada, e dá um leve soco no Marcelo, que o larga, mas eu continuo tentando impedí-lo de embarcar. E o que ele faz? Consegue num segundo de minha desatenção, puxar o meu dedo minguinho da mão direita. Só escuto um “trac”, e o osso é quebrado. Com dor, solto o Valmor, que pula dentro do ônibus e se manda para ver a Rose. Acabo indo pro HPS, sábado à noite, e diagnóstico: “Dedo quebrado”. Ele é engessado. E lá pelas onze da noite lembro da entrevista de segunda-feira. Bem, como o emprego estava garantido, apareço na empresa com gesso e tudo. O irmão de minha amiga me olha e diz: “Mas o que houve?”. Claro que não iria falar a verdade, e digo que levei um tombo jogando bola. “Mas como tu vai escrever à máquina”, pergunta ele. “Ainda tenho nove dedos...”. Mas não, eles precisam de um datilógrafo para ontem, e não podem esperar pela minha recuperação. Sou dispensado na hora, e passo mais alguns meses de aperto. Como diria minha amiga: “Bem feito, assim tu vê se cresce”. Ih, tá demorando.

sábado, 17 de agosto de 2013

"Doente"

Em 2005 caí numa depressão terrível, que me custaram alguns meses afastado do Correio do Povo. Tratamento psiquiátrico, isolamento social e outras mazelas. Quando comecei a sair do buraco, faço uma visita a minha amiga Eliana Camejo, cujo escritório de sua assessoria de imprensa fica a uma quadra do consultório de meu psiquiatra. Toco a campainha, ela mesma abre a porta e fica me olhando, pensando quem será aquele refugiado da Etiópia. Sim, no auge da doença, perdi 40 quilos, e a Eliana não me reconhece. "Sou eu, o Chico", digo, e ela leva um susto, me abraçando na sequência. Nas horas seguintes, a Eliana quer saber o que houve comigo, e conto tudo, tim tim por tim tim. No final da história, ela me diz: "Tu vai escrever um livro sobre isto tudo". O meu psiquiatra acha a ideia ótima, pois vai ajudar muito na recuperação. E uma sala do escritório da Eliana passa a ser minha pelos próximos dois meses, para onde me dirijo após as sessões de terapia para digitar o texto que rabisco num caderno que a Eliana me dera naquela primeira tarde. Quando termino o trabalho, mostro o texto pro David Coimbra, que vibra e diz: "Temos de publicar". E no domingo seguinte, toca o meu telefone. Já passei da fase do total isolamento e atendo. Do outro lado da linha a Larissa Rosso: "Chico, tu já viu a Zero hoje?". Não, eu não havia visto. Pego o jornal e lá está na coluna do David uma apresentação do meu livro, que nem fora publicado ainda, mas seria meses depois. Pois bem, quando o livro sai do prelo, ganho resenhas em alguns jornais e revistas e mais colunas do David. E chega a vez de o Correio do Povo, minha casa, fazer uma página sobre ele. E o que acontece? A página está pronta, e o então diretor-geral do jornal olha, olha e pergunta: "Cadê o rapaz?". "Olha, está afastado por problema de saúde", avisa um editor. "Como assim, doente e escrevendo livrinho? Não tem de sair nada aqui no jornal. Pode mudar esta página", determina ele, sem pensar que o livro serviu como terapia. Aliás, pensar é uma palavra muito forte para a cabecinha dele. Apesar do boicote da casa, o livro vai bem e acaba esgotando duas edições, ganhando até três páginas de uma matéria do caderno Donna, escrita pela Patrícia Rocha.

"Zoado"

Definitivamente, apesar de meu tamanho e de ser negrão, e sim, muita gente se assusta com isso, não costumo meter medo nas pessoas. Volta e meia sou zoado por estranhos, seja na rua, no serviço ou em estabelecimentos comerciais. Mesmo que fique sério, tentando não rir, as pessoas não estão nem aí. Outro dia fui pegar o T-7, fazia um friozão, ventava e chovia. Subo no ônibus ali em frente ao shopping Praia de Belas e a cobradora olha pra mim, e debocha: “Tá com friozinho, hein?”. Anteontem, caminhando pela Rua da Praia, escutando meu metal pesado no Ipod, um velhinho me para, pede pra eu tirar o fone e fala: “Meu rapaz, estou escutando daqui esta tua pauleira. É como um anestésico na tua cabeça, né”, brinca ele. Nem me dou ao trabalho de responder. E então entro no elevador do prédio onde fica o escritório do meu advogado, o Joel. Dois garotinhos, de uns nove, dez anos, ficam me olhando, olhos arregalados. “O que foi?”, pergunto. “Bah, moço, o tamanho da tua testa...tu é muito cabeçudo”, diz um deles, e os dois se mijam de tanto rir. E por aí vai o bullying. Ninguém tem medo de que eu possa ficar brabo, que ameace alguém com porrada. Mas então no banco HSBC, onde tenho conta, a sacanagem foi maior. Renegociando uma dívida de um empréstimo que pedi há algum tempo, a gerente calcula daqui, digita dali, e conclui os cálculos. Vou ficar pagando até 2015. “2015?”, me assusto. “Sim, 2015. Mas seu Francisco, nem se preocupe, 2015 é logo ali. Quando chegar lá, o valor da prestação será uma migalha”, garante ela. “Puxa, são quase três anos”, constato. “Seu Francisco, pensa que se o senhor morrer, a dívida é automaticamente cancelada. Ou seja, não tem do que se preocupar com esta dívida”, sacaneia a gerente.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

“Fidel”

O grande assunto sem importância da semana é a Playboy com o ensaio da atriz Nanda Costa, que decidiu não depilar a bacurinha para posar. As fotos remetem ao ensaio de Claudia Ohana e Vera Fisher, que também foram fotografadas pela revista sem se preocupar com a quantidade de pelos na vagina. Mas aqueles eram outros tempos e outros costumes femininos. Hoje em dia, as mulheres passam a navalha em suas partes íntimas. Então a gente está acostumado com vaginas skinheads ou bigodinho de Hitler. Ai pouco tempo atrás estava saindo com uma mulher de seus 30 e poucos anos. Na primeira vez que fomos para a cama, ela para na minha frente, e começo a tirar peça por peça de suas roupas, e chego na calcinha. E o que vejo? Bom, a menina não devia se depilar há um longo tempo. Mas longo tempo mesmo. Os pelos pubianos, em grande volume, chegavam nas coxas. E ela pede que eu coloque a língua lá embaixo. Sério. Pelo bem da nação, vamos lá. E ela ainda aperta minha cabeça no local, enquanto geme, aliás, berra muito. Às vezes tento respirar, mas ela pressiona minha cabeça lá embaixo. Terminado o serviço, acho que será a minha vez de ganhar um agradinho. Ela beija meu peito, meu umbigo, e vai se dirigindo lá pra baixo. Então para, me olha e com o dedo indicador, faz o sinal de negativo. “Eu não faço boquete, nunca”. Afirma ela, pulando no meu colo. Ela goza de novo, pula da cama, e corre pro banheiro, me deixando ali na seca. “Eu não transava há oito anos”, confessa ela. Aí entendi a selva lá embaixo.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

“Blumenau”

Nunca consegui trabalhar na RBS, e olha que tentei. Definitivamente não sou a cara deles, e me conformei com isso. Não sei o motivo de ter sido recusado tantas vezes, sei lá, não sou bom o suficiente para a empresa, sou um péssimo jornalista, escrevo mal, ih...são várias as especulações. Mas a pior de todas ocorreu em 1993, quando respondi a um anúncio na Zero Hora oferecendo vaga para “O Jornal de Santa Catarina”, sediado em Blumenau. Envio meu currículo e começo a esperar o retorno deles. E sou convocado para uma entrevista ali na avenida Ipiranga, uma segunda-feira, 10h da manhã. Para prevenir qualquer atraso, chego bem cedinho, 45 minutos antes, me apresento pra secretária e sento na sala de espera da entrevistadora. Quietinho. Um pouco antes das 10h uma moça entra na sala, e fica por lá. Dez horas, 10h05, 10h10, 10h15 e nada de eu ser chamado. E a tal moça sai da sala e pergunta pra secretária: “O Francisco Izidro ainda não chegou?” Eu levanto os olhos. E a secretária aponta pra mim: “É este rapaz”, apontando pra mim. A entrevistadora também aponta o dedo indicador em minha direção: “Você que é o Izidro? Francisco Izidro?”. “Sim”, respondo, tentando não fazer piada da situação, afinal estou ali em busca de emprego e quero fazer boa figura. Ela me convida a entrar na sala. Entro. “Teu sobrenome é espanhol. Não esperava...”, diz a moça, que se chama Ana Paula. “Não esperava o quê? Um negão?”, concluo. “Sim, não esperava que tu fosse de cor”. “Me desculpe, não sou de cor, sou negro”, digo, tentando não perder a esportiva, e não é a primeira e nem será a última vez que pelo sobrenome esperam que apareça um europeu. E nos próximos 20, 25 minutos a Ana Paula tenta me convencer que não será “uma boa” eu aceitar ir trabalhar em Blumenau, terra de alemães. “Olha, eles não tem de olhar pra minha raça, e sim pro meu trabalho”, concluo, “Mesmo assim...”. Bem, sei que ela termina a entrevista e que existem mais dois candidatos para a vaga lá em Santa Catarina, e que me ligará avisando do resultado da entrevista. Bem, ela nem se deu ao trabalho.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

“Castigo”

Por causa do hipotireodismo e do colesterol, estou vivendo uma fase de alimentação sadia, muitas frutas, carne branca, pão integral, iogurte natural. E o mínimo de doces e nada, nada de frituras e cerveja. Pois outro dia me deu uma larica ao chegar na padaria. Vejo um pacotinho de rapaduras de amendoim, mas não posso comer a iguaria. Só que aquele pacote de pé de moleque fica na minha cabeça, e à noite em casa sonho com ele. No dia seguinte, volto lá e penso: “Foda-se. Não vou morrer se comer só um pé de moleque”, e pago R$ 4,60 pelo pacotinho com umas oito rapaduras. Em casa, fico olhando pros doces por dois dias. Não posso comer, não posso comer, mas a baba segue escorrendo da boca. Lá pelas onze da noite, um filme no TCM, e eu decido: “Ah, um docinho...”. Abro o pacote, e devoro um, dois, três. Deu, chega, penso. Mas não é o suficiente, Pego um quarto doce, mordo e o amendoim se aloja no vão de um dente. Passo a língua e nada de ele sair dali. PQP. Pego um fio dental e enfio no buraco. Para em seguida, o amendoim sair, junto com toda a obturação do dente. Eu não acredito. Simplesmente a obturação quebrou, levando ainda boa parte do dente no lado direito da boca, lá na parte de trás. Os R$ 4,60 foram duplicados duzentas vezes, que é mais ou menos o que terei de pagar para consertar o dente. Olho grande é f...

“Amantes”

Às vezes não resisto a uma boa sacanagem. Lá por 1991, 1992, o Jaime me encontra, e todo feliz diz estar namorando. Conheceu a menina de seus sonhos e garante estar profundamente apaixonado. “Tu precisa conhecer ela. Ela é linda, acho que vou casar com ela”, jura ele, olhinhos brilhando. Combinamos de então na sexta-feira tomar um café no Rua da Praia Shopping lá pelas sete da noite, para ele me apresentar a menina dos sonhos. E no dia combinado, cai a maior água em Porto Alegre, mas não é isso que vai nos impedir. Estou lá, sentadinho no café e ele chega de mão dada com uma menina de cabelos bem curtinhos. “Chico, esta é a Cláudia”, apresenta o Jaime. Olho praquela guria e tenho a impressão de que a conheço. Mas daonde? Bem, pedimos capuccinos, e enquanto esperamos sermos servidos, vamos nos apresentando. E de repente recordo. “Tu por acaso não é a filha do seu Cizinho e da dona Cleci?”, pergunto. A Cláudia me olha: “Sim. Tu também não me é estranho”, diz ela, “É que tua mãe é a melhor amiga da minha mãe, a Flora”, lembro ela. “Sim, sim...puxa, mas não te via há muito tempo”, continua ela. O Jaime ali sorvendo seu café, e nos olhando. Eta mundinho pequenho, Então baixa o espírito de porco em mim. “Cláudia, legal te reencontrar. Mas não sei se o Jaime te contou...”. “Contou o quê?” “Ora, por que tu acha que ele fez tanta questão de me apresentar pra ti?”, questiono. “Ora, tu é o melhor amigo dele”. “Tu acha que é só isso?”, continuo. O Jaime nos olhando. “Acho”. “Pois bem, serei honesto contigo, já que ele não foi”, falo, pegando a mão do alemão. “Nós somos amantes”, digo, olhando nos olhos do Jaime, que fica muito, mas muito vermelho. O Jaime se engasga com o café, fica vermelho, muito vermelho. “Oh...”, solta a Cláudia, não querendo acreditar na revelação e quase levantando. “Tou brincando, Cláudia, tou brincando...”, reparo, para alívio da Cláudia, mas o Jaime continua vermelho. “Jaime, toma uma atitude e diz pra tua namorada que estou de sacanagem, cara”, digo. “Porra, Chico, tu é foda, quer bagunçar meu namoro?”, consegue falar ele. Eu e a Cláudia começamos a rir sem parar. Ela sacou a brincadeira, mas para o Jaime faltava um pouco de senso de humor, e a futura esposa dele quase embarca na indecisão do alemão.

“Esmola”

Estagiário no Juizado de Menores nos anos 1980, encontro um colega furioso ao entrar no prédio, que ficava na Coronel Vicente. “O que foi?”, pergunto. “Um rapaz pediu dinheiro para fazer um lanche, pois estava com fome”, me conta ele. “Mas como não dou dinheiro de jeito nenhum para pedintes, disse que lhe pagaria um lanche”, continua. Escuto atentamente. “E...” “Bem, vou ali na lancheria, peço que façam um xis, e entrego pro rapaz. Ele pega o lanche, caminha uns 10 metros e atira a comida numa lixeira, e sai correndo, me mandando tomar no cu”, completa. “Se já não dava dinheiro, agora nem comida darei mais”, garante meu antigo colega. Fico com aquilo na minha cabeça. Anos depois, eu e a Beth caminhamos no Centro quase vazio, é um domingo à tarde. Ela está me levando até o jornal. E na Borges de Medeiros dois mendigos deitados em frente a Loja Paquetá. Um deles estica o pescoço no meio de todas aquelas tralhas que costumam carregar, e pergunta, até de forma educada: “Com licença, desculpe incomodar, mas o casal não poderia nos dar um troquinho, a gente está aqui o dia inteiro sem comer nada, estamos morrendo de fome”, fala. A Beth já vai abrindo a bolsa para catar algumas moedas, mas eu digo não, nada de dinheiro. “Não vou dar dinheiro, mas pago um lanche pra vocês”, garanto, já procurando com o canto dos olhos alguma carrocinha de cachorro-quente. E logo ali na frente, do outro lado da rua, vejo uma. Eu e a Beth vamos lá, peço dois hot-dogs, pago, e voltamos aos mendigos. Alcanço a comida para o que está mais próximo. Ele pega os dois pães e já mordisca um, deixando o outro do lado. “Meu amigo, é pros dois”, digo. “Não, é só meu”, grita ele. E neste instante, o outro mendigo se joga nele, os punhos abertos, gritando. A Beth também grita, dá um pulo pra trás, o fedor das roupas sujas dos dois se espalha pelo ar. “A comida é pros dois, comprei pros dois”, repito, e eles se tapeando. A Beth me puxa pelo braço, e pede para sairmos dali. Fiquei pensando se caso tivesse dado dinheiro para eles, iriam se esfaquear.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

“Bocaberta”

Desço do ônibus, coloco a mão no bolso da calça para pegar minhas chaves, e elas não estão lá. Calma, calma, calma. Procuro nos bolsos do casaco, da camisa, e nada. Ponho a mochila no chão e começo a revirar cada centímetro dela, e nada. PQP. Perdi as chaves e não tenho como entrar em casa. Sim, o gênio não possui cópia. Nisso vem passando o carteiro e o pai da Carol, o Giba. “Giba, abre o portão pra mim que perdi minha chave”, digo. O carteiro me olha, e avisa: “O síndico estava com umas chaves aí no pátio”. Bah, será que serão as minhas chaves? Entro no prédio e vou procurar o seu Nelson. E lá vem ele. “Seu Nelson, o senhor por acaso não encontrou umas chaves?”. “Olha, achei, mas toquei fora”, sacaneia ele. “Já entendi, seu Nelson, é porque tem um chaveiro do Grêmio, né?”, digo. “Olha, não quis dizer nada, mas não queria ser encontrado com drogas”, continua sacaneando ele, me entregando as chaves. “Elas estavam no portão da entrada. Tu abriu o portão, deixou elas lá e se mandou, né?”, completa. Pior, foi o que fiz. Ufa, salvo. E me surgem aquelas lembranças. De quando dividia o teto com uma namorada, há muito tempo atrás. Chego em casa, abro a porta, fecho a porta, largo a mochila no sofá, e vou pro banho. A minha namorada chega, entra e cansada, pede que eu vá ao supermercado. Me prontifico, pego a carteira, e cadê as minhas chaves? Nem sinal. Reviramos o apartamento de cabo a rabo, e nada delas aparecem. Simplesmente evaporaram. “Amor, tu tem certeza de que não perdeu na rua”, pergunta ela. “Claro, afinal como entrei em casa?”, constato. “É, estranho, muito estranho, um caso para o Mulder e a Scully”, encerra ela, citando nossa série favorita na época, o Arquivo X. Pois anos depois, muitos anos depois, já separado dela, estou sentado na minha poltrona, vendo um filme e tomando um vinho, e olho pra porta, lá em cima, onde fica um preguinho. E o que vejo pendurado nele? As chaves que desapareceram naquele final de tarde de um sábado em 1998.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

“Escapada”

Há muito, muito tempo atrás consegui sair com uma loirinha linda, uns três anos mais velha do que eu. Ela tinha 19 e eu 16 anos, e fomos jantar no Chalé da Praça XV, antes da reforma que o modernizou. Sexta-feira à noite, e ela chega, elegante, cheirosa. É a terceira vez que nos encontramos, e as coisas estão começando a ficar sérias entre nós. Puxo a cadeira para ela sentar, tal qual meu pai me ensinou. Ela senta, pedimos o cardápio e começamos a estudar o que pedir. Antes de comermos algo, peço dois refris. Eles chegam, o garçom serve nossos copos, e a menina abre a bolsa e tira de lá uma carteira de Marlboro. “O que é isso?”, pergunto, já sabendo a resposta, né, dã. “Ué, meu cigarro”, responde ela, acendendo um, e soltando a fumaça na minha direção. “Mas desde quanto tu fuma?”, continuo. “Desde sempre, acho que desde os 13, 14 anos...” Eu não consigo disfarçar meu descontentamento. “A gente já saiu umas vezes e eu nem imaginava”, lamento. “Bah, Chico, é que no começo eu fiquei meio assim, achei que tu não iria gostar, me falaram que tu é chato com cigarro, mas é bobagem, né...”, analisou a loirinha, soltando mais fumaça na minha cara. E ela era muito linda. Eu digo que vou ao banheiro. “Já volto, vou ao banheiro”, falo. Ao invés de ir ao banheiro, eu vou é embora, deixando a guria sozinha lá no bar. Dois dias depois, o irmão dela vai em meu encalço, furioso por eu ter deixado a loirinha a ver navios no Chalé. Ele só desiste de brigar ao ver meu tamanho, mas mesmo assim me passa uma carraspana. “Porra, meu, tu não podia deixar minha mana sozinha lá no Centro. E se acontece algo? Ainda bem que não. Lamento que tu tenha perdido uma baita gata”, diz ele. E sim, a guria nunca mais quis me ver.

domingo, 11 de agosto de 2013

“Pão”

Chovia torrencialmente naquela noite de sábado lá em meados dos anos 1970. A tia Marlene faz uns bolinhos de chuva e serve para mim e minha prima Maria do Carmo junto com chocolate quente. A Maria do Carmo, no entanto, recusa os bolinhos. Ela quer pão. “Maria, não tem pão, come um bolinho”, diz minha tia. “Não, eu quero pão”, insiste a menina. Naquela época o bairro Cristal não é como hoje, com padarias, shopping. A nossa rua, a Campos Velho, mal era asfaltada. O único mercadinho na rua já estava fechado, estava escuro, a chuva castigava, ventava. E a Maria do Carmo chorando, pois queria comer pão. O tio Vandir, sósia do Kadaffi, sai à rua para tentar encontrar o maldito pão. Passa meia-hora, uma hora, uma hora e meia, e aparece o tio, o guarda-chuva arrebentado, ele todo molhado, mas traz numa sacola o pão de meio-quilo. Coloca na mesa. A tia Marlene desembrulha o alimento e começa a cortá-lo. E a Maria do Carmo: “Não quero mais, perdi a vontade”. Eu nunca havia visto a minha tia Marlene tão furiosa quanto naquele momento, quase dez da noite. “COMO TU NÃO QUER MAIS PÃO? POIS AGORA TU VAI COMER TODO O PÃO”, grita ela. “Eu não quero”, bate o pé a Maria do Carmo. Minha tia pega o chinelo, ameaçando bater na bunda da minha prima, que antes mesmo de sofrer o castigo abre o berreiro. “Tu não chora. Senta lá na escada”, determina a tia Marlene. “Mas tá chovendo, mãe”. “Não me interessa, senta lá”. A Maria senta na escada que dava para o pátio dos fundos, protegida por um toldinho. E a tia Marlene coloca o pão, todo o pão no colo dela. “Pode começar a comer”, ordena. “Mas...” “Nada de mais, pode comer todo o pão”. “Não tem margarina?” “Não, não tem margarina. Tu não vai sair daí enquanto não comer todo o pão”. A Maria começa a comer, e toda a vez que diz estar enjoada, entupida, se vê ameaçada pelo chinelo. Ela come todo o pão, meio-quilo, sem acompanhamento, sem chocolate quente. E nunca mais pediu algo que não tivesse na mesa.

sábado, 10 de agosto de 2013

"Briga"

Naquela época não muito distante, os fumantes ainda eram permitidos no Bar Opinião. Anos 1990. Uma guria de pé, toda arrumadinha, enfim uma Patricinha, está conversando com as amigas, todas próxima as mesas. Estou a alguns metros, tomando minha cervejinha, observando o ambiente, admirando o mulheril. E a guria mexe os braços, conta algo, entusiasmada e encosta perigosamente em uma mesa, onde outra menina, sentada, segura o cigarro com a mão direita acima da cabeça. E o cigarro acaba encostando na Patricinha, e começa a queimar um de seus braços. “Ui”, geme ela, olhando para ver o que lhe provocou a dor. E encara a fumante com raiva. “O que foi, minha filha? Ninguém mandou tu vir pra cima da minha mesa”, provoca a fumante. Na sua mesa, copos de cerveja e uma garrafa. A Patricinha não pensa duas vezes. Pega um dos copos, que está cheio de cerveja: “Vagabunda”, grita, jogando a cerveja na cara da guria que está sentada. E esta não perdoa: “Sua puta”. E no segundo seguinte, as duas estão engalfinhadas no chão, uma puxando o cabelo da outra e vice-versa. A galera, ao invés de separar as brigonas, incentiva mais. “Arranha ela”, berra uma. “Chuta a vaca”, grita outra. Uns carinhas abrem os braços para evitar que os “chega disso” se aproximem. A briga de fêmeas só acaba com a intervenção dos seguranças. “Se te pego na rua te mato, sua vagabunda”, grita a fumante. “Tu me queimou, sua vaca”, berra a menina queimada, as duas sendo arrastadas para fora.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

“Maratona”

Nesta semana acompanhei a maratona da Maressah e da Aline na TV Ulbra, trabalhando direto mais de 30 horas. Nossa. Então recordo uma vez que decidi ver quanto tempo conseguiria me manter acordado, sem dormir um segundo. Eram os anos 1980 e eu estava na faculdade, passava as noites de sexta no Opinião, que ainda era um espaço tri-pequeno e aos sábados, quando sobrava uns trocados ia à Chuca comer pizza, dezenas de pedaços. Comecei a maratona na quinta-feira, logo após chegar das aulas na Unisinos. O destino foi um boteco na Osvaldo Aranha, os bares fechavam lá pelas seis, sete da manhã. De lá vou para a república onde morava na Duque de Caxias, banho, um gole de café preto, um pão com margarina, e de volta pra São Leopoldo. Na volta, direto pro Juizado de Menores, onde cumpria seis horas de trabalho no arquivo processual. Na saída, fui ao cinema assistir a um documentário do AC/DC no Cine Sesc, ali na Alberto Bins. O corpo ainda não reclamava cansaço, então fui ao Opinião. Para não quebrar minha maratona, só água mineral e coca-cola. Vou resistindo, Horas depois, já estou no Parque Saint-Hilaire, em Viamão, batendo bola. Quanto tempo ainda resistirei? Já são quase 48 horas. Sábado à tarde dou uma volta na casa de amigos e me entupo o máximo que posso de café preto. E à noite tem a danceteria Taj Mahal. As pernas já fraquejam, mas não quero me entregar. Quero chegar até o domingo à noite em claro. O jeito é não ir para casa, nem sentar no sofá. Consigo atravessar a madrugada de domingo dançando. A ideia é passar o domingo jogando futebol. E imagino que quando cair na cama, dormirei por dois, três dias seguidos. Finalmente domingo, onze e meia da noite. Deito. Melhor capoto. E às cinco e meia da manhã estou mais acordado do que nunca. Ligado no 220volts, E vamos de novo, Unisinos, Juizado de Menores...

“Verdade”

Recém vivendo meu primeiro relacionamento mais sério. Estamos em casa, eu e minha namorada, sábado à noite, e a ideia é sair para dançar numa danceteria que na Cidade Baixa. Estou pronto há “horas”, sentado no sofá, vendo alguma coisa na televisão e nada de a minha guria ficar pronta. Com a comodidade natural, acabamos ganhando alguns quilos a mais. E finalmente lá vem ela, saindo do banheiro, longos cabelos negros, batom vermelho e envolta naqueles vestidinhos pretos tão comuns naquele período, acho que chamavam de tubinho. “Amor, estou bem?”, pergunta ela. Os meus olhos apaixonados confirmam. Ela está muito bem. “Mas tu não acha que eu estou um pouquinho cheinha?”, pergunta inocentemente. Eu fico olhando, olhando e falo, sem meias palavras. “Ah, amor, tu está com uma barriguinha”, digo, olhando para uma leve pancinha sob o vestido preto dela. Deu. “Tu me chamou de gorda, eu estou gorda?”, grita. “Não, não, só disse que tu está com uma barriguinha”, repito, merecendo ser chicoteado. “Eu não sou gorda!”, garante ela. “Eu não disse isso. Tu está bem”, tendo consertar, e não há conserto. Ela fica com um beiço enorme, vira as costas e volta pro banheiro. A noite acabou ali para ela, para nós. E ali aprendi que tem coisas que não devemos nunca dizer para as mulheres. Mas à época eu era um amador total. Agora sou só meio amador.

“Torcedor”

O Ribeiro era um operador de áudio da Rádio Guaíba sem muitos freios na língua. Falava o que estava pensando e que o mundo se danasse. Pois em meados da década de 1990 foi designado para cobrir um jogo do Inter contra o Goiás no Serra Dourada, em Goiânia. E naquela época o Verdão do Planalto Central costumava derrotar sem dó e piedade a Dupla Gre-Nal. Tanto que viraram um clássico as narrações do Marco Antônio Pereira quando o Tricolor ou o Colorado iam jogar lá. “É do Goiáaaaaaaaaaaaasssssss”, cansou de narrar o Papagaio naqueles anos. Pois é a vez de o Inter jogar em Goiânia, e o Ribeiro está lá atrás da goleira dos vermelhinhos, e eles levam um gol. O operador era gremista doente, e não se segura, pulando e socando o ar ao comemorar um gol dos goianos. Só que a partida está sendo transmitida para Porto Alegre, e o diretor-geral da Guaíba e do Correio do Povo é colorado doente, e está na sala do Telmo assistindo a derrota de seu time. E fica muito, mas muito furioso ao ver seu funcionário na tela da Globo comemorando o gol do Goiás, em close, Não tem dúvidas. No dia seguinte, quando o Ribeiro põe o pé no prédio, seu destino está traçado. Ele é demitido, sem dó nem piedade.

“Traidor"

Lá por 1997, 98, o Possas foi designado para cobrir um jogo de futsal em Pelotas, sua terra natal, pela Rádio Guaíba. Era um sábado à noite, e ele estava acompanhado do Pelotinha e do Orestes de Andrade. Um dos times era o Inter, que vivia o auge com a parceria com a Ulbra. E o Adinho atrás de uma das goleiras, encostado na rede de proteção da quadra, e o juiz dá pênalti para o time porto-alegrense. A torcida da casa protesta, vaia, xinga, e o Possas é chamado para dar seu depoimento. “Sem dúvida, foi pênalti. O árbitro foi correto”, garante. Deu. A torcida da casa começa a berrar contra o repórter da Guaíba. “Seu vendido, foi pra Capital e virou isso aí”. “Filho de uma égua”. “Burro”, berram os torcedores. O Possas, esquentadinho por natureza, manda um sinal com o dedo médio para eles, e só piora a situação. “Não retiro uma palavra do que disse”, enche a voz no microfone da Guaíba. “Filho da puta, filho da puta”, berram seus conterrâneos. “Traidor”, berra um carinha, atrás dele, encostado à rede. O Possas não tem dúvidas, e mete uma voadora no incauto. Climão. O jogo termina com vitória colorada. O Possas no meio da quadra dando o depoimento final, quando vê o torcedor que sofreu a voadora se aproximar. O cara parece vir em paz, abrindo um sorriso. O Possas estica a mão direita para cumprimentar o conterrâneo, que desfere um direto de direita na boca do repórter, que desaba no chão. “Fui agredido”, berra ao microfone. A Brigada interfere, e o Possas sai escoltado do ginásio. E no dia seguinte aparece na redação do Correio do Povo, a boca inchada, como se tivesse aplicado botox. E fica uma semana sem poder falar, para nosso alívio.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

“Te vira”

Nos meus tempos de DJ, em que muitas vezes o pagamento que recebia era uma garrafa de Coca-Cola, uns negrinhos, uns cachorros-quente e um pedaço de torta, desde que não fosse de coco, um colega pediu que eu colocasse som em seu aniversário de 18 anos. Sem problema, disse. E como desde sempre fui um sem carro, eu necessitava de caronas para levar o equipamento de som e os discos, que tenho até hoje. O pessoal que solicitava meus trabalhos, e tinha gente de Gravataí, Viamão, Porto Alegre, Canoas, dava um jeito de pegar o material na minha casa. Pois bem, foi a única exigência que fiz ao aniversariante. E a resposta que recebo em troca: “Ah, cara, te vira. Só esteja no clube lá pelas oito da noite”. Ouvi aquilo como se levasse uma facada. Putz, nem um “ah, pago o táxi, peço pra alguém pegar o som e os discos na tua casa, nada. Só um te vira”. Tudo bem. Chega a data da festa. E eu me viro mesmo, na cama, de um lado para o outro. Fico vendo Primeira Exibição na Globo, bem tranquilo, nada de remorsos, tomando Coca-Cola e comendo pipoca. E como naquela época não existia celular e eu nem tinha telefone em casa, não fui encontrado. No dia seguinte, dou de cara com o aniversariante na rua. Possesso comigo. “Como tu me deixa na mão”, diz ele, tentando me socar. “Velho, eu não deixei ninguém na mão. Eu só te pedi uma coisa”. “Eu também, e fui traído. Isso não se faz”, berra ele, tentando me socar de novo. Virei as costas e fui embora. Como fazer o indivíduo entender que ele foi o egoísta e não eu?

terça-feira, 6 de agosto de 2013

“Atração Fatal Parte II”

“Esta tua colega não sabe que tu é uma pessoa comprometida? Que ela não pode ficar ligando pra cá assim, sem mais ou menos?”, dispara a Beth. “Amor, ela só ligou para saber como estou da gripe”. “Sei, sei”, encerra desconfiada a Beth. Quando volto pro jornal, peço pra guria parar de me seguir e ligar. E ela...não obedece. O telefone começa a tocar sempre depois das 11 da noite, a gente atende e a pessoa do outro lado fica em silêncio para desligar repentinamente. Eu sei quem é, e isso me deixa com os nervos à flor da pele. Pior que já aprontei muito na vida, mas daquela vez era totalmente inocente. Então acontece. Estou em casa, sozinho, à tarde, assistindo televisão. A Beth está na casa da mãe dela. E toca a campainha. Quem pode ser? Abro e dou de cara com a minha colega, ali parada. Putaqueopariu. Como ela descobriu? “Chico, preciso falar contigo”. “Mas como tu...”, digo, abrindo a porta em seguida, afinal tenho vizinhos, e imagino se um deles vê ela ali, parada. Deixo-a entrar. Ofereço o sofá para ela sentar. Ela senta, e eu suando frio. Passo a escutar o som dos elevadores como estivessem na minha cabeça. E se a Beth chega. “Por favor, o que tu está fazendo aqui?” “Vim te ver”. “E se a Beth estivesse aqui?” “Eu sabia que não”. Nem faço questão de descobrir como ela ficou sabendo. “Tu tem de deixar ela. Ela não te merece, eu posso te fazer feliz”, dispara. Parece que estou vivendo um filme. E ela tira a blusa e o sutiã, mostrando belos seios. “Guria, por favor...” Ela tenta me beijar, eu desvio. “Eu não vou deixar a Beth”, garanto. E ela acorda do transe, põe de novo o sutiã e a blusa, pega a bolsa, e só consegue dizer: “Me desculpe, eu pensei que...” Abre a porta e se manda. Dias depois, eu tendo de ignorá-la na redação, ela para na minha frente, e só diz: “Estou morrendo de vergonha”. E nunca mais falou comigo.

“Praga”

O time do Correio do Povo, batizado de Inimigos da Bola, vai realizar um amistoso com os veteranos do São José no Passo D’Areia em 1998, domingo pela manhã. Chego em casa e aviso a Beth que vou jogar e depois tem um churrasco. A guria enlouquece. “Mas tu não vai”, determina. “Ah, impossível, eu e o Ilgo somos os organizadores da partida. Não tem como não ir”. “Mas no domingo o Jaime e a Claudia vem aqui em casa almoçar com a gente, já combinei com eles”, avisa ela. “Desmarca”. “Nem pensar”, diz ela. “Então faço o seguinte, vou só no jogo e não fico pro churrasco”. “Não, nem jogo e nem churrasco”, bate o pé a Beth. Aliás, nós dois batemos pé, e ficam aqueles beiços todo o sábado. Domingo pela manhã acordo, arrumo a mochila, e a Beth de pé na porta, só me encarando. “Tu vai teimar e ir mesmo?” “Sim, mas volto depois do jogo, lá pelo meio-dia. Tu combinou com eles que horas, meio-dia, meia-hora. Dá tempo”. “Eu queria que tu estivesse aqui quando eles chegarem”. “Volto logo”. “Tu vai voltar logo e machucado, tenho certeza”, dispara. O Sadi passa em casa para dar carona, vamos pro Passo D’Areia, o jogo começa lá pelas 10h. Metade do segundo tempo, 4 a 2 pra nós, a bola vem passando pela área, vem caindo nas minhas mãos, eu pulo para pegá-la e nos segundos seguintes, caio, e só ouço um “crac”. Caio berrando de dor. Todos correm para a pequena área. O Roque Dalmut, capitão do Zequinha, olha e diz que não foi nada, uma torção. O Ilgo fala o contrário. “Olha, eu acho que pelo berro dele, a perna quebrou”. Como estou com o corpo quente, a dor não é tanta. Acaba a partida, empate de 4 a 4 depois que o Possas entra no meu lugar, e aos 44 minutos, e toma o quarto gol abaixando a cabeça, após um chute fraco de fora da área. Ah, vou ficar pro churrasco, a dor diminuiu. Encho a cara de cerveja, uísque, e nada de dor. Lá pelas 14h, o celular toca, é a Beth. “Não vem pra casa?”, pergunta. “Estou indo”, garanto. Aviso o Sadi que tenho de me mandar, e preciso de carona. “Vamos lá”, diz ele. Vinte minutos depois, abro a porta, e vejo a Beth me olhando furiosa, ao lado do casal de amigos. “Não vou falar nada agora”, diz ela. Entro no banheiro para me lavar, coloco o pé no chão após tirar as chuteiras, e uma dor lancinante toma conta de meu corpo. A Beth corre pro banheiro, abre a porta. “Quebrou a perna, né? Eu sabia que isso iria acontecer”, fala. “Me ajuda aqui”, peço. “Não”, dispara ela, voltando a fazer companhia à visita. Tomo banho, me arrumo e me junto à aquela hora desanimada reunião na sala. Quando eles vão embora, vou ao hospital, sozinho. E sim, o tornozelo direito está quebrado. Volto pra casa, de pé engessado. “Não mandei ir jogar bola. Eu sabia que isso iria acontecer”, escuto da Beth. E passo os próximos 40 dias sentado no sofá, pé imobilizado, e escutando protestos por ter ido ao Zequinha aquela manhã de domingo.

“Desperdício”

Recém separado de um relacionamento de seis anos, costumava reunir os amigos em casa para jantas, cafés coloniais, e vinho, muito vinho, sempre com trilha sonora bem rock’n’roll. Não havia depressão, era muita bagunça com a galera, ao contrário do que ocorreria no relacionamento seguinte. Bem, um dia o Roque Dalmut, diretor do Zequinha, deixa uma mensagem no meu celular: “Chicão, tá precisando de combustível, quando precisar é só me ligar. Um abraço!”. Eu não entendi, afinal de contas não tinha carro e nem pretendia possuir um. Falo com o Ilgo Winck e o Renato Gava. “Ah, Chico, combustível deve ser bebida”, me avisam. E era. O Roque era dono de uma importadora de bebidas. Então vamos lá na loja eu e o Gava buscar duas caixas cheias de bebidas. Vinhos, uísque, vodca, rum e por aí em diante. Distribuo algumas bebidas pra gurizada e mantenho comigo os vinhos chilenos e argentinos. No final da tarde de sábado recebo a visita do Jaime e da Cláudia, que ainda não eram pais do Pedrinho. Preparamos uma lasanha e abro a primeira garrafa de Casillero del Diablo. Só eu e o Jaime bebemos, a Cláudia fica na Coca-Cola. Finalizamos a primeira garrafa e abrimos a segunda. Consumida em minutos. “Meninos, acho que vocês devem parar agora”, diz a Cláudia. Estamos alegrinhos, falando bandalheiras, e discordamos dela. É aberta a terceira garrafa. Tudo começa a girar, mas não paramos. Decidimos ir pra quarta garrafa, que está na caixa na cozinha. Eu levanto a caixa, e o peso das garrafas cheias, mais de 12!, faz com que o fundo se abra. E todas, todas as garrafas se espatifam no chão, para nosso desespero. Principalmente o Jaime, que não pensa duas vezes, e começa a lamber o vinho derramado pelo chão, como fosse um cachorrinho. A Cláudia ouviu da sala a explosão, correu pra cozinha e vê o marido naquela posição. Põe as mãos no rosto, tal qual Macaulay Culkin em Esqueceram de Mim. E só consegue falar: “Meu Deus, Jaime, que vergonha, que vergonha”. Ele, bebaço, olha pra ela e responde, com a voz enrolada: “Vergonha é desperdiçar este vinho”.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

"Saudade"

Uma namorada que tive reclamava de meus horários confusos no jornal. Sábados pela manhã, domingos tarde e noite, todas as noites da semana. Acabávamos nos vendo aos sábados, domingos pela manhã e nas minhas folgas, nas segundas. "Estou com saudades", dizia ela. "Eu também", garantia. "Então sai do trabalho e vem me ver", pedia ela, às seis da tarde. "Mas não posso simplesmente levantar e ir embora", dizia. "Tu não quer me ver", reclamava ela. "Quero sim, mas simplesmente não posso sair agora", jurava. E ela reclamando. Aos domingos, lá pelas 15h eu tinha de dar tchau e me mandar pra redação. "Por que tu não mata o serviço e fica aqui comigo?", pedia a guria. "Não posso. Quem vai pagar as minhas contas, colocar comida na mesa?", eu falava, indo embora e ela ficando de beiço. "Tu não gosta de mim". "Gosto, mas tu está desempregada e eu não posso ficar....", constatava. Então dois dias sem nos vermos, e ela ligava: "Chico, tou com saudade". "Também estou. E até é legal sentir saudades". "Mas por quê? Tu não quer me ver?" "Não, sentir saudades é bom, pois quando nos vermos, vai ser mais legal, mais romântico", analisava. "Tu não gosta de mim!". "Gosto, tu não está entendendo. Saudade é um sentimento gostoso. Imagina se a gente vivesse grudado, toda hora junto, acabaríamos enjoando". "É porque tu não gosta de mim, não quer ficar comigo", protestava. "Assim é difícil, quero dizer que é bom ficar uns dias sem nos vermos, aumenta o sentimento". "Tu não quer me ver....". Difícil.

sábado, 3 de agosto de 2013

“Atração fatal – Parte I”

Curtia minha vida ao lado da Beth, quando uma colega de jornal resolveu se encantar pelos meus belos olhos castanhos...e se declarou pra mim no corredor entre a entrada e a redação. “Sou casado”, digo. “Mas não tá morto, e eu te quero pra mim”, diz a guria, tentando me lascar um beijo. Eu desvio o rosto, e me cagando de medo que algum outro colega veja a cena, afinal a Beth trabalha lá no segundo andar, e as notícias se espalham rapidamente por aqueles corredores. A guria passa a ser uma sombra para mim, aparecendo quando estou no bebedouro, quando vou pra sacada tomar um cafezinho, quando estou na sala do telex. E começa a me mandar emails. Por um lado é legal ser desejado, admirado, levar cantada. Só que as coisas começam a fugir do controle. A menina liga pro meu ramal e me convida pra almoçar no dia seguinte, um sábado. Sou obrigado a recusar. “Mas por quê?”, pergunta ela. “Porque sou comprometido”, digo. “Só um almoço”, pede ela. “Amanhã não posso, pois eu e a Beth iremos visitar uma tia minha que está no hospital”, digo. “Mentira”, berra a guria. Na segunda-feira chego no jornal e quando vou tomar um café, a guria para na minha frente e fala: “Realmente tu foi ao hospital”. “Mas como tu sabe?”, pergunto. “Eu segui vocês....” Minha nossa...Na semana seguinte, acabo não indo trabalhar, uma gripe me põe abaixo. Estou em casa, deitado no sofá, tapadinho, e a Beth na poltrona ao lado, recém fez uma sopa pra mim. E o telefone toca. Ela atende: “Alô...ah, só um minuto”, e me alcança o aparelho. Pego e do outro lado a colega: “O que esta vagabunda faz aí? Manda ela embora”, berra. Eu começo a suar frio, olho pra Beth, que fica me encarando, curiosa. “Muito obrigado pela preocupação, mas estou bem melhor da gripe”, digo, em voz alta. “Que que tu está falando? Não me interessa tua gripe. Eu quero que tu deixe esta puta e fique comigo”, grita a colega. “He, he, obrigado por perguntar, estou bem melhor”, desconverso. “LARGA ESTA VAGABUNDA E FICA COMIGO!”, dispara histericamente minha colega. “Valeu, boa noite”, digo, desligando o telefone, e passando ele pra Beth, que põe o aparelho na base. Fico pensando se por acaso ela não escutou os berros da guria do outro lado da linha. O suor escorre de minha testa e fico olhando pra Beth...que me olha desconfiada. (continua)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

“Prefeito”

O Possas era repórter de Geral na Rádio Guaíba, mas às vezes quebrava o galho no Esportes. E naquela tarde de quarta-feira chuvosa ele estava escalado para cobrir um jogo do Grêmio no Olímpico pelo Gauchão em meados da década de 1990. E feliz da vida por lembrar seus tempos de Band. Pois o Adinho chega na redação, e recebe uma notícia não muito agradável da chefe de reportagem Eliane do Canto: o prefeito de Gravataí acabara de falecer e ele teria de cobrir o velório ao invés do futebol. Reclamou, reclamou, deu aqueles pitis que só quem conhece o Adinho sabe, mas foi para Gravataí. O motorista era o Salgadinho. O Possas chega no local, entrevista o vice-prefeito, alguns familiares, e pelo rádio pergunta se pode voltar pro estúdio, e escuta uma negativa. Tem de ficar até o final. E começa o stress. Em frente ao caixão, começa um de seus tradicionais discursos de reclamação: “Que merda, este imbecil tinha de morrer logo hoje. O ano tem 365 dias, e ele morre agora que eu iria fazer um joguinho. Morto de merda. Eu odeeeiooooooooooo este cara!”, berra o Possas para a Eliane, que da redação pede pro Adinho se acalmar, e baixar a voz. O tiro sai pela culatra. “Por que não esperou pra morrer amanhã...” Só que o piti do intrépido repórter está sendo feito bem em frente à família do falecido, que está achando aquele espetáculo nada agradável. “O senhor poderia respeitar nosso ente querido?”, pedem os familiares. E o microfone aberto, e toda a redação escutando os acontecimentos. E o Possas responde: “Não, não, ele está atrapalhando a minha vida”, garante. O motorista Salgadinho age rápido, puxa o Possas, os dois correm para dentro do carro da Guaíba, trancam as portas, enquanto uma turba tenta virar o veículo. O Salgadinho, então, sai do carro e pede desculpas para todos. “Tudo bem, mas tira este rapaz alterado daqui”, pede a viúva. “Eu não sou alterado”, reclama o Adinho. “Possas, cala a boca, e volta”, encerra a Eliane.

“Morcego”

Estou entrando no Opinião para assistir ao show do Angra quando decido dar uma última checada no celular, e lá está uma mensagem da Simone: “Chico, antes de sair do jornal, me liga....”. Parece urgente, então ligo para a Simone. “O que foi?” “Chico, onde tu está? Já saiu do jornal?” “Sim”. “Tu não tem como vir aqui em casa?” “O que aconteceu?” “Entrou um morcego aqui. Ele tá enfiado num canto, me apavorando”, diz ela. “Putz, estou dentro do Opinião, não tem como ir aí agora”. “Seu puto, o que vou fazer, porque tu não viu a mensagem antes?” “Bah, Si, tu vai ter de chamar um vizinho”. Nada mais posso fazer. Começa o show e lembro de uma vez, 1998...Estamos em casa, eu e a Beth, domingo à noite, vendo um filme e jantando, quando algo passa voando pela sala e se dirige pro quarto. “Amor, o que foi aquilo?”, pergunta a Beth, assustada. “Acho que é um morcego”, deduzo. Às nove da noite não seria uma pomba. Levantamos e nos dirigimos pro quarto, a Beth segurando minha mão. Acendo a luz, e lá está o bichano em cima do roupeiro, encolhido. Peço pra Beth buscar a vassoura. Ela vai, volta e me entrega a vassoura. Que uso pra puxar o morcego, que vem vindo, vem vindo e sai voando. Perdemos ele de vista por alguns segundos, e quando o vejo...”Amor...”, digo. “O que...” “Não te mexe”, peço, pois o morcego simplesmente se alojou nos longos cabelos da Beth, que caiam no meio das costas. Meu aviso, porém, surte efeito contrário, ela imagina o que está acontecendo, e começa a se tapear, e quanto mais faz isso, mais o morcego vai grudando suas patas nos seus cabelos. A Beth se debate, corre pelo quarto, e dou um leve safanão com a vassoura no bicho, que se solta, mas para na cortina. Bem grudadinho. Abrimos a janela, e eu tento puxá-lo pra fora, e nada. A esta altura, a Beth olha toda a ação escondida atrás da porta. Não quero machucar o bicho, mas também não quero ver a Beth mais desesperada. “CHICO, TIRA ESTE BICHO DAQUI DE UMA VEZ!”, berra ela. “Calma, já vai, já vai”, falo, empurrando o morcego bem devagar. Então ele se cansa da brincadeira e voa janela fora. Então a Beth lembra que o morcego pousou no seu cabelo, ameaça cortá-lo bem curto, desiste, mas passa uma semana lavando-o manhã e noite. E eu ponho telas nas janelas do apartamento.

quarta-feira, 31 de julho de 2013

“Praça”

Perto do Colégio Paula Soares tem uma pracinha, mais exatamente na Fernando Machado, não tenho passado por lá, mas havia um posto da Brigada Militar ao lado. Será que ainda está lá? Bem, na época da escola, o local servia para várias distrações. Matar aula era a menor delas. No primeiro grau a turma ia lá para andar de balanço. Um tempo depois a galera namorava por lá. E depois ia tomar vinho de garrafão comprado no Zaffari e claro...fumar um baseado, escondendo o cigarrinho do capeta quando via um brigadiano aproximando-se. Então estamos lá, eu, a Flávia, a Inês Valéria, o Ricardo, colegas que nunca mais encontrei na vida, matando aula, e sentados nos balanços. O garrafão de vinho no chão, aberto, e a gente bebia pelo gargalo mesmo, dando risada e falando do que pretendíamos fazer quando chegássemos à vida adulta. Nisso dois carinhas se aproximam, e gelamos. Sabemos que vamos nos incomodar...Eles vêm vindo, são mais velhos e maiores. Como falávamos naquela época, levaremos um atraque, ou seja, vão surrupiar nosso dinheiro, o material escolar...ih, eu tenho umas revistas em quadrinhos na pasta...”Gurizada, podem cair fora”, dizem eles. Ufa, não seremos aliviados de nossos pertences. Os dois querem a praça só pra eles pra fumar um baseado. O Ricardo, que era bem magrinho, levanta e vai saindo. Eu, cagão por natureza, também. A Flávia idem. Mas a Inês Valéria, que era casca grossa, que para quem falar palavrão era como respirar, não vai entregar tão fácil assim nosso território naquele começo de noite. Ela permanece sentada no balanço, e um dos caras pega o braço dela. “Me solta”, grita. O outro pega nosso vinho. “Caiam fora”, ordenam. E nós paradinhos. “Porra, mina, sai fora”, diz o carinha pra Inês, que fecha as mãos nas correntes do balanço. O cara puxa os dedos dela, e nada. Então ele perde a paciência, e desfere um violento soco no olho da guria, que cai pra trás. Temos de fazer algo. Corremos em direção à ela, a levantamos e olhamos feio pros dois. E eles puxam seus canivetes. Bem, acabou qualquer discussão. Pegamos nossas pastas, deixamos o vinho e vamos embora. No dia seguinte, a Inês chega à aula com o olho roxo, ainda mais evidente por causa de sua pele alva. Ela senta, a gente se olha. E caímos na gargalhada.

"Pés"

Uma das principais características que me atrai em uma mulher são os pés dela. Já deixei de ficar com alguma menina por isso. Pegar na mão o pezinho, beijar, ih...se não me agrado, não tem jeito. Acabou ou melhor, nem começo. Alguns amigos até colecionam fotos dos pés das mulheres com quem ficam. Um, casado, tem várias fotos de pés de amantes em seu celular, ah, se a mulher dele descobre. Pois uma amiga me revela. Nunca, nunca, em seus 30 e poucos anos de vida, um namorado e até mesmo o ex-marido elogiaram, beijaram seus pés. E olha que ela tem os pés lindos, já vi. “Agora, quando vier te encontrar, só virei de sandálias ou chinelinho”, brincou ela. Então fui encontrar uma menina com quem vinha conversando no facebook. Nos encontramos para jantar num shopping. Está quente e ela chega de sapato aberto, mas escolheu pessimamente o modelo, ah, sim, isto para um podólatra também é importante, o sapato, as cores do esmalte. Olho para aqueles pés, e...fudeu. Não vai ter jeito. Até trocamos beijos, vamos pro meu apartamento, transamos, mas eu constato que não vai rolar mais nada concreto entre a gente, quando não beijo os pés dela. Não consigo nem olhar praquelas lanchas. Aí eu penso ser o único maluco na face da terra, e descubro que vários amigos e amigas têm o mesmo sentimento. “Não gostou do pé do parceiro, nada de relacionamento”.

"Dente"

Algumas pessoas não gostam de perder. Crianças choram e talvez fiquem violentas. O Beto ficou violento. Jogávamos botão, e ganhei a terceira partida seguida, o que desagradou meu amigo. Irritado, ele virou a mesa e meus jogadores caíram no chão. Devolvi quase na mesma moeda, ou seja, peguei os botões dele e atirei no meio da rua. O Beto foi lá recolher seus craques, e um deles voou na minha direção, arremessado pelo perdedor. Não tive tempo de desviar, e o botão chocou-se com minha boca. O resultado foi um dente da frente quebrado. E ele ficaria assim 35 anos, até uma dentista colocar uma placa nele.

“Gente como a gente”

Tenho uma amiga que é uma gata. Linda, por onde passa nunca é ignorada pelos olhares masculinos, que a cobiçam sedentamente. Eu mesmo já lhe lancei olhares cobiçosos. Às vezes ela vai a algum bar ou restaurante, afinal curte os momentos de solidão, e sempre tem um carinha pedindo para sentar com ela e lhe pagar uma cerveja. "Não, obrigada", agradece ela. Atualmente está curtindo mais seus felinos em casa, ao lado de uma garrafa de vinho tinto. E mesmo quando está namorando, não abre mão de sua independência. Tanto que em muitas oportunidades, saiu para jantar na Cidade Baixa. E era fatal, levava uma cantada. Dizia então: "Bah, cara, tenho namorado". E sempre ouvia de volta: "Mas o cara é muito trouxa de te deixar aqui sozinha" ou então: "Mas cadê o carinha que deixa uma baita gata assim sozinha na noite...". Ela nem se dignava a responder. Então a turma está reunida, e uma amiga pergunta à ela: "Na boa amiga, como é isso de ser desejada por todos os homens?". "Mas o que tu está dizendo?" "Todos os caras te querem". "Jura, assim fosse...” “Ah, não te faz”. “Além de ser normal, até já fui expulsa da casa de um ex-namorado”, garante a linda, e todo mundo olha espantado. “Mas como assim?”, perguntamos. “Eu era apaixonada por um carinha, irmão de uma amiga, louca por ele mesmo. E consegui namorá-lo. E ele acabou comigo. Não acreditei, o cara me dispensou. Fui na casa dele, ele me pega pelo braço e me tira de lá, dizendo que não queria me ver nunca mais”, revela. “Chorei, chorei, e voltei lá, pedi que ele voltasse pra mim. Ele me pega pelo braço de novo, me põe num táxi, e repete pra mim não voltar. Eu voltei e fui expulsa de novo”, lamenta ela. Uma das gurias não resiste: “Mas quem era este carinha? Era o Gianecchini?”. “Há, há, há, não, mas era lindo”, garante, pegando o computador e abrindo o facebook. Todo mundo corre pra ver ela mostrar um carinha com a cara do...Matheus Nachtergale. “Ainda bem que tem gosto pra tudo”, finaliza alguém.

domingo, 28 de julho de 2013

“Paciência”

O síndico do meu prédio não gosta nenhum pouco de crianças. Veta qualquer brincadeira mais animada da petizada nos dois parquinhos do condomínio. Pois a Sara, afilhada do Alex, está brincando no balanço, e lá vem o síndico, caminhando devagar. A menina, quatro anos de idade, para de se balançar, e cumprimenta o homem. “Oi!”, diz animadamente, vozinha fina de criança. Ele continua sua caminhada implacável, sem olhar para os lados, procurando alguma irregularidade para mostrar seus poderes ditatoriais. “Oi, como está o senhor?”, insiste a menina. E nada de resposta. “Véio, boa tarde”, berra, desesperada Sara, sedenta por atenção daquele senhor de cabelos brancos e semblante seríssimo. Silêncio. E então a doce menininha perde a paciência: “Então é assim? Não vai me dar oi, é? Então vai tomar no teu cu!”, grita, para desespero do Alex, que vê o síndico parar e fuzilar os dois, furiosamente. “Sara, é falta de educação ofender os adultos”, ensina ele. “Mas dindo, eu dei oi pro véio, e ele não me respondeu”, responde a guriazinha, sabiamente. O Alex olha pro síndico, pede desculpas, mas o homem continua furibundo, e prossegue sua caminhada nazista. Mas não multa o condômino.

"30 anos esta noite"

Adolescente, morava com minha mãe e minha irmã adotiva na rua Vasco Alves, ali perto do Gasômetro. E não teve jeito de convencer a dona Flora para que me deixasse ir à final da Taça Libertadores da América entre o Grêmio e o Peñarol no Olímpico, na gelada noite de 28 de julho de 1983. "É perigoso", disse ela, mesmo eu com o ingresso no bolso, presente de meu pai. Os dois haviam se separado um ano antes. Então a torcida era de que a televisão transmitisse a partida ao vivo para Porto Alegre. Àquela época, era pré-pay per view e tevê a cabo, as emissoras só colocavam o jogo no ar caso os estádios lotassem. Bem, a previsão era de um Olímpico lotado. Em Montevidéu, uma semana antes, empate em 1 a 1 no mítico Estádio Centenário na partida de ida. O Grêmio saiu na frente com gol de Tita, e os uruguaios igualaram com o cracaço centroavante Fernando Morena. Então, chegou o grande dia no Olímpico. Frio de 5 graus na capital gaúcha, e público de 73.093 pessoas. A decisão, ufa, teria transmissão para Porto Alegre. E eu em frente a televisão de 14 polegadas, colorida naquelas, muito chuvisco, fantasmas, a antena com bombril. Nervosismo à flor da pele. Logo aos 9 minutos, o Grêmio saiu na frente com gol do centroavante Caio depois de cruzamento da esquerda do meia Osvaldo. Foguetório na cidade, pulo enlouquecido pela sala do pequeno apartamento. A mãe e minha irmã no quarto, alheias àquela loucura. Vinte e cinco minutos da etapa final, e uma ducha de água fria na gremistada, quando Fernando Morena, sempre ele, empata numa violenta cabeçada à queima-roupa, sem chances para Mazarópi. Não vai dar, penso. Os carboneros vão virar e ser campeões, ops, pentacampeões, pois haviam vencido um ano antes e também em 1960, 1961 e 1966, ano de meu nascimento. Me desespero. E seis minutos depois, o lance mágico. Coloco o jogo nos pés mágicos de Renato Portaluppi, o ponteiro-direito rebelde vindo de Bento Gonçalves, apenas 20 anos, e o centroavante César, ex-América-RJ e vindo do Benfica. "Agi por intuição ao mandar aquele balão para a área uruguaia", lembrou Renato. Numa disputada jogada na ponta-direita, o atacante recebeu de Tarciso e foi cercado por dois adversários. Então levantou a bola e mandou uma bomba para a área do goleiro Fernández, que não tentou interceptar o lance. "Não vi o César na área. Apenas pensei que é dentro da área que as coisas se resolvem. Ali tudo pode acontecer", analisou o hoje técnico tricolor. "Foi um lance de gênio", garante o eterno ídolo, sem falsa modéstia. E quem finalizou o lance de gênio foi César, que entrara em campo aos 18 minutos da etapa final no lugar de Caio. O incrível é que dias antes Sônia, a esposa do meia Tita, havia sonhado que César faria o gol do título e que o Grêmio seria campeão. "Eu acompanhava atentamente o Renato e o Tarciso encurralados na ponta-direita. E no momento em que o Renato deu o balão, corri para a área. Ela veio chegando, os caras olhando para cima e notei que não conseguiria alcançá-la com os pés. Aí decidi pular e enfiar a cabeça, mesmo com o pé do Olivera na minha frente", recorda. E você não teve medo de se machucar, pergunto. "Você já teve medo de fazer uma entrevista", devolve o César. "Já", confesso. "Pois eu não tive medo, pois queria ser campeão. Poderia ter a cara estourada, mas faria aquele gol", continua o ex-atacante. "Tenho muito orgulho de ter enfiado a cara naquela bola", afirma. Na comemoração do gol é possível ver César ser abraçado por Tita, que segundos depois lembra da profecia de Sônia, põe as mãos na cabeça e cai no choro. A decisão ainda teria mais uns 15 minutos, duas expulsões, do uruguaio Ramos por agredir Mazarópi, e Renato por cair na provocação dos adversários. E finalmente o árbitro peruano Edison Perez apita o término do jogo, e solto o choro. Exatos 30 anos atrás, completados esta noite. No dia seguinte, chego no Colégio Paula Soares com um sorriso bobo na cara. Os colegas colorados desde 1981 já não infernizavam pelo Grêmio não ter um título do Brasileiro. E agora eu era campeão da América, e eles não eram. No Brasil, além do Grêmio, só o Santos, o Cruzeiro e o Flamengo possuíam tal honraria. O próximo passo era o Mundial, em Tóquio, em dezembro, na decisão com o alemão Hamburgo, mas esta é outra história.

sexta-feira, 26 de julho de 2013

“The Wall”

Quando The Wall, do Alan Parker, estreou em Porto Alegre, em 1983, não fui assistir. A Anamaria, o Alexandre, a Paula Cristina e a Alessandra mataram aula para ver o filme com as músicas do disco homônimo do Pink Floyd. No dia seguinte, contaram extasiados como havia sido a aventura. Apesar da ótima memória que tenha, não recordo desta vez o motivo de não ter ido assistir ao filme de minha banda preferida, que à época ainda não era a minha banda preferida. Era o Van Halen. E The Wall saí de cartaz. Quando conseguiria ver de novo? Nem ideia, afinal à época não existia DVD, video-cassete, nada. Teria de esperar que um dia alguma das seis emissoras existentes (Guaíba, Manchete, TVS, Cultura, Bandeirantes e Globo) se dignassem a passar a trama considerada psicodélica. Então em 1985, eu já fã inexorável, possuidor de todos os discos do Pink Floyd, fico sabendo que o Cinema Imperial passaria uma semana completa de The Wall, sempre às 20h e às 22h, entre a segunda e a sexta-feira. Mas catzo, bem na hora da aulas no Paula Soares. Tudo bem, eu só preciso de duas horas na segunda-feira. Às sete e meia eu desapareço do colégio e vou ao cinema. Até me assusto quando vejo a fila enorme para comprar o ingresso e penso que não conseguirei. Respiro fundo e tento não me desesperar, mas já desesperado. E consigo o desejado bilhete. Entro na sala, banco de madeira. E começa The Wall. Uma hora e meia depois, estou ali, simplesmente enfeitiçado, sem palavras. Alucinado, apaixonado por toda a vida. E decido ficar para a sessão seguinte. E naqueles anos de cinema de rua havia uma vantagem maravilhosa. Quando uma sessão se encerrava, a gente não precisava sair da sala. Podia ficar para quantos sessões desejássemos num mesmo dia. E eu fiquei para a sessão das dez. E simplesmente voltei em todos os dias seguintes, terça, quarta, quinta e sexta. Aí o filme saiu de cartaz. E eu assistia o filme em casa. Colocava os discos, fechava os olhos e imaginava as cenas. Até ser abençoado com a chegada, primeiro do video-cassete, e depois do DVD. Agora já perdi a conta das vezes que assisti The Wall. Confortavelmente entorpecido (Comfortably Numb).

“Agora?”

Os pais do Marco Antônio já tinham quase sessenta anos, e a gente imaginava que eles nem transassem mais. Um sábado de inverno, frio, chuva, a turma decide ir dançar no Partenon Tênis Clube. Cada integrante da turma vai passando na casa de outro, e assim por diante, aumentando o quórum. Depois de oito casas e oito pessoas arregimentadas, resta o Marco Antônio, que está jantando pela terceira vez em duas horas. “Cara, vamos lá, tá pronto?” “Tou acabando aqui”, diz ele, limpando o resto da sopa com uma fatia de pão, e correndo pra escovar os dentes. “Deu, pronto”. “Mas tu vai sair assim? Tá frio e chovendo lá fora”, avisa o Fernando. “Esperem, que vou pegar meu casaco”. E nada de achar o casaco. “Mana, viu meu casaco”, pergunta ele pra Gorete. “Acho que vi na cadeira no quarto do pai”, informa a guria. “Bah, é mesmo”. São onze da noite, e a porta dos pais dele está fechada. Devem estar dormindo. O Marco Antônio bate na porta e nada. Bate de novo. Nada. “Pai, mãe”. Nada. Então ele gira a maçaneta, e ah, não está trancada, entrando no quarto. “Agora, Marco Antônio, agora? Logo agora?”, berra o velho. A turma escuta os gritos e corre pro recinto, vendo os pais dele, nus em pelo, um sobre o outro. O Marco Antônio corre, pega o casaco, e ninguém ri, ninguém ri. Aos olhos de um bando de adolescentes nos anos 1980, a cena foi muito bizarra. Assustadora. Só meia-hora depois, o Lauro faz uma piada, e todos lembram do momento, e começam a rir. E durante um ano, toda a vez que o Marco Antônio falava algo, alguém soltava a frase mágica: “Agora, Marco Antônio, agora?”.

“Amarelos”

Uma das saias justas mais terríveis que assisti ocorreu no Cinema 1-Sala Vogue, na Independência. Sábado à noite, estreia do oscarizado Gritos do Silêncio, sobre o Khmer Vermelho e a Guerra no Camboja no começo dos anos 1970. O filme vai terminando, após mais de duas horas de assassinatos, explosões, tentativas frustradas de fuga. Entra a música Imagine, do Lennon, quando os personagens principais se reencontram e se abraçam. Choradeira no cinema, as luzes se acendem, e um carinha sentado perto de mim berra: “Bah, finalmente acabou esta porcaria. Não aguentava mais ver este monte de gente amarela na tela. Ainda bem que mataram metade deles...” Eu me viro, outras pessoas se viram, e o carinha racista se vira, e na fila de trás, uma família de asiáticos, sete, oito pessoas, entre homens e mulheres, rapazes e moças. Todos olham desconsolados para o cara, nada de mágoa nos olhares, apenas tristeza. O carinha tenta se desculpar: “Não quis dizer vocês, quis dizer lá do filme, sabe, aquela gente amarela violenta...” E ele não sabia mais o que dizer. As pessoas se levantam e um senhor toca no ombro dele: “Moço, só tá piorando. Só fica quieto”, e olha praquela familia. “Perdoem ele”.

quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Haley"

Aniversário de 15 anos da Hellen, no Clube dos Funcionários do Tribunal de Contas, no Cristal. O Denilson passa uma descompostura no resto da turma, pois segundo ele, a galera não sabia se comportar e fazia fiasco. Deveriam ser como ele, ou seja, não beber e nem atacar as guriazinhas. A turma escuta o sermão, se olha de canto e prepara a vingança. Enquanto tomam um gole de cerveja, oferecem dois copos cheios para o Denilson. Ele acha poder se controlar, e acaba perdendo a conta. Após o corte do bolo, a aniversariante vai distribuindo souvenires de seus 15 anos, na mesma noite em que o cometa Halley cruzaria os céus. A Hellen oferece uma lembrancinha, um cartãozinho com os dados da festa e um pequeno boton, para o Denilson. “Não, obrigado, estou satisfeito”, diz ele, vomitando em seguida. Quando vê, aliás, não vê, está sendo expulso do salão pelo segurança. Completamente alcoolizado, cai na frente do clube, e continua a devolver ao mundo as bebidas e comidas que ingeriu naquela noite. Em seguida, começa a tremer. O Jaime vai ao seu socorro. O cara está pálido. “Chico, empresta tua camisa para aquecer o Denilson”, pede. “A minha camisa é nova, e o fiasco é dele”, solto. O Beto é expulso em seguida, sai do clube torto de bêbado. Enfia o dedo na goela, vomita uns dois litros, e na hora fica são. “Vamos de novo”, fala. E o Denilson desmaia. O pessoal larga ele, para em vão tentar enxergar o Halley. Nisso passa um lotação, que para. “Moço, precisamos levá-lo pro hospital”, pede o Lauro. “Ele está bêbado?”, pergunta o motorista. “Sim”. “Então nada feito”, garante, pisando fundo. O jeito é tentar pegar um ônibus. Mas não passa nenhum. “Alguém aí viu o Halley”, pergunta o Marco. “Nada”, avisa o Marcelo, pendurado numa árvore. Finalmente vem um T-4. Embarcamos nele, o Denilson sendo carregado por dois dos guris. Descemos na Igreja São Jorge, para pegar o ônibus para Viamão. Começo a contar. Éramos 12 na festa. Conto apenas 11. Cadê o 12º? Olho pro T-4, e lá está o Leandro Radial dormindo, a cabeça encostada na janela, e o ônibus se vai em direção a Ipiranga. Bem, azar dele, pensamos. O cara só acordou no final da linha, na Assis Brasil, e sem dinheiro, teve de pedir carona para poder voltar para casa. Ah, o Denilson? Passou o domingo praticamente em coma.

"Casal"

Estou lá sentadinho em meu lugar preferido no restaurante ao lado do Tribunal de Justiça, na Praça da Matriz, comendo minha salada forçada da semana. Na mesa ao lado, um casal jovem, cerca de 30 anos. A guria, loirinha, olhos castanhos, olha apaixonada para o carinha, que tem em sua frente um prato transbordando de arroz, feijão e vários bifes. Ele come, bebe um guaraná, tudo de boca aberta. O prato dela tem saladinha, frango, arroz e feijão. E ela toda educadinha, tomando água mineral. Ai acaba e levanta para pegar mais comida, e o cara não perdoa. “Onde vai a gorda? Pegar mais comida? Não é a toa que está deste tamanho, enorme...” E a guria não tem nada de gorda. Deve ter uns 1,70m e uns 60, 63, 64 quilos no máximo. E fica vermelha. Pensa em desistir de voltar ao bufê. “Amor, tu acha?”, pergunta ao sei lá se namorado, noivo, marido. “Saudade do tempo que tu era magrinha, agora tá isso aí, estourando...” “Só vou pegar um pedacinho de peixe...” “Não sei como ainda te aguento, vai lá, come, gorda!”. A guria desiste e senta de novo. Ele termina a comida dele, levanta e vai buscar mais. Seu rosto some atrás do prato cheio. A loirinha fica ali, observando encantada o carinha, devorando o almoço. Não ousa comer mais. A barriga deve estar gemendo de fome. Ele pega um palito, põe na boca, e vai buscar a sobremesa. Não consigo parar de observar a dupla. “Amor, posso comer um pudim?”, pede ela. O cara faz um beiço, mas um beiço, que eu pensei que fosse bater na guria. “Tu não me escuta, né? Só pensa em comer, depois vai virar uma bola. E o que farei? Chutar a bola”. A guria sendo humilhada ali, mas conformada. Eu já terminei de comer, mas fico bebericando minha fanta laranja, para ver aonde vai terminar aquilo. Ela faz beicinho, pede: “Ah, só um pedacinho, deixa...” Silêncio. Ela pega o pudim, come e eles levantam. “Fulana (não consegui escutar o nome dela), tu paga, pois não trouxe meu cartão”. Ela paga, pega a mão dele, e saem do restaurante.