domingo, 11 de agosto de 2013

“Pão”

Chovia torrencialmente naquela noite de sábado lá em meados dos anos 1970. A tia Marlene faz uns bolinhos de chuva e serve para mim e minha prima Maria do Carmo junto com chocolate quente. A Maria do Carmo, no entanto, recusa os bolinhos. Ela quer pão. “Maria, não tem pão, come um bolinho”, diz minha tia. “Não, eu quero pão”, insiste a menina. Naquela época o bairro Cristal não é como hoje, com padarias, shopping. A nossa rua, a Campos Velho, mal era asfaltada. O único mercadinho na rua já estava fechado, estava escuro, a chuva castigava, ventava. E a Maria do Carmo chorando, pois queria comer pão. O tio Vandir, sósia do Kadaffi, sai à rua para tentar encontrar o maldito pão. Passa meia-hora, uma hora, uma hora e meia, e aparece o tio, o guarda-chuva arrebentado, ele todo molhado, mas traz numa sacola o pão de meio-quilo. Coloca na mesa. A tia Marlene desembrulha o alimento e começa a cortá-lo. E a Maria do Carmo: “Não quero mais, perdi a vontade”. Eu nunca havia visto a minha tia Marlene tão furiosa quanto naquele momento, quase dez da noite. “COMO TU NÃO QUER MAIS PÃO? POIS AGORA TU VAI COMER TODO O PÃO”, grita ela. “Eu não quero”, bate o pé a Maria do Carmo. Minha tia pega o chinelo, ameaçando bater na bunda da minha prima, que antes mesmo de sofrer o castigo abre o berreiro. “Tu não chora. Senta lá na escada”, determina a tia Marlene. “Mas tá chovendo, mãe”. “Não me interessa, senta lá”. A Maria senta na escada que dava para o pátio dos fundos, protegida por um toldinho. E a tia Marlene coloca o pão, todo o pão no colo dela. “Pode começar a comer”, ordena. “Mas...” “Nada de mais, pode comer todo o pão”. “Não tem margarina?” “Não, não tem margarina. Tu não vai sair daí enquanto não comer todo o pão”. A Maria começa a comer, e toda a vez que diz estar enjoada, entupida, se vê ameaçada pelo chinelo. Ela come todo o pão, meio-quilo, sem acompanhamento, sem chocolate quente. E nunca mais pediu algo que não tivesse na mesa.

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