quinta-feira, 16 de outubro de 2014

"Mesário"

Estamos em 2002. Estou em casa numa terça-feira, por volta das 22h, quando toca o interfone. Atendo e do outro lado da linha, escuto: "É o carteiro". Ué, o que desejaria um carteiro àquela hora da noite? Um golpe, seria assalto? Não libero a entrada do cara no prédio e desço a portaria. E quando chego no térreo, vejo mesmo um carteiro do lado de fora. Abro a porta para ele. "Sim?", pergunto. Ele me passa um envelope e a prancheta com um papel para assinar. "O que é?", questiono. "É do TRE". Então verifico que estou sendo convocado para trabalhar de mesário nas eleições. E simplesmente me recuso a assinar o papel e devolvo o envelope. Ah, não, brincadeira. Mais uma vez. Desde 1990 me pegavam para trabalhar de mesário e eu estava de saco cheio. "Mas o senhor tem de assinar", insiste o carteiro. "Não, não", digo. Ele pega os papéis, coloca na bolsa e escreve algo no papel que me recusei a assinar. E vai embora. Duas semanas depois, toca o telefone. Atendo. "Sim". "Bom dia, por favor, o senhor Francisco". "Eu mesmo". "Aqui é do TRE". "E..." "Bem, o senhor está sendo acusado de crime eleitoral e pode ser preso nas próximas horas". "Como?". A pessoa do outro lado da linha repete. Fico achando que é trote de algum amigo, mas o funcionário continua: "Há duas semanas o senhor recusou convocação para trabalhar nas eleições. Isso é crime e o senhor pode ser condenado até a seis meses de cadeia". Então me dou conta que não contei para ninguém, a não ser a minha namorada da época, sobre o ocorrido naquela terça-feira. "O senhor tem 24 horas para apresentar sua defesa", continua o cara. Na mesma hora, me arrumo e me mando pro TRE, ali na Praia de Belas. Chego lá, e sou encaminhado ao cartório eleitoral. Onde já sou recebido com ironia. "Bom dia, ligaram para mim agora, me ameaçando de cadeia", informo. "Ah, pessoal, apareceu aqui aquele carinha que recusou a convocação", diz o atendente, chamando a atenção dos colegas, que começam a rir. E uma mulher me olha e diz: "Meu rapaz, sua atitude é horrível. Imagina que temos pessoas que até se oferecem para trabalhar nas eleições", dispara. "Ótimo para elas", rebato. "Mas eu não quero mais", completo. "Cadê seu senso de cidadania? ", me diz ela. "Olha, depois de doze anos eu perdi", respondo. "Tsc, tsc, tsc, que triste", escuto. "Por que o senhor se recusou a assinar a convocação?", pergunta o funcionário que me atendeu primeiramente. "Sou mesário desde 1990. Deu, né?". "Sabe, meu rapaz, que tem uma senhora de 78 anos que implora para ser mesária", diz a mulher. "Que bom pra ela. Mas eu não quero mais", repito. "Bem, já que você insiste em negar, tem como provar que foi mesário desde 1990? Caso contrário, você será preso por até seis meses", ameaça o funcionário. "Aliás, você tem 48 horas para comprovar ter trabalhado nas eleições. E só é liberado se tiver trabalhado no mínimo em cinco eleições", ressalva. "Mas não estamos no TRE? Vocês devem ter todos os dados informatizados, né? Passei das cinco eleições faz tempo", afirmo. Ficam me olhando com cara de "ó, que cara esperto, ele nos pegou". "É, temos". "Então vocês não podem pegar meus dados e acabar de vez com esta discussão?", peço. "Lhe daremos a resposta em dois dias", avisam. Dou tchau para eles, que simplesmente me ignoram, virando as costas e voltando a seus afazeres. Dois dias depois, me ligam e informam que eu estava livre para sempre da tortura de ser mesário.

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